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Bloody Sunday (1972/2002/2022/2025)
- 1. A coletiva de imprensa
- 2. O ogro
- 3. A comparação
Na minha época tinha certos filmes que "todo mundo" assistia, e
apesar deles falarem sobre coisas bem grandes eles viravam uma
referência pra gente pensar sobre coisas bem menores. O Bloody Sunday, de 2002, é sobre como numa marcha pacífica na Irlanda em 1972 os
paraquedistas do exército de ocupação inglês resolveram atirar nos
participantes da marcha, mataram 13 pessoas, e isso fez com que
milhares de pessoas se alistassem no IRA (nesta
cena). O filme termina com uma coletiva de
imprensa em que um dos organizadores da marcha - Ivan Cooper - dá
essas declarações aqui:
- Nesta tarde, 27 pessoas foram baleadas. Treze delas estão
mortas. Eram pessoas inocentes. Nós estávamos lá. Esse é nosso
massacre de Sharpeville. Esse é nosso massacre de Amritsar. Foi um
momento de revelação e um momento de vergonha. Apenas quero dizer
para o governo britânico... Vocês sabem o que fizeram, não é mesmo?
Vocês destruíram o movimento pelos direitos civis. E deram ao IRA a
maior vitória que eles já tiveram. Por toda a cidade, hoje à
noite... jovens, garotos, vão se juntar ao IRA... e vocês vão colher
uma tempestade. Muito obrigado.
- O que vamos dizer para as pessoas que vão se unir a eles?
- Eu não saberia o que dizer a eles depois do que aconteceu
hoje.
(...)
- Eu gostaria de dizer para vocês, jornalistas britânicos...voltem
para a sua gente, para o seu governo... e contem a eles o que foi
feito no nome deles. Os pára-quedistas intervieram... eles esperaram
nas ruas de Derry para nos destruir. Gostaria de dizer isso, da
parte de todos nós... as famílias das vítimas e as vítimas... que
não vamos descansar até que a justiça seja feita.
O original em inglês é:
- On this afternoon, 27 people were shot in this city. 13 of them
lie dead tonight. They were innocent. We were there. This is our
Sharpeville. This is our Amritsa Massacre. A moment of truth and a
moment of shame. And, uh, I just want to say this to the British
government: You know what you've just done, don't you? You've
destroyed the Civil Rights Movement. And you've given the IRA the
biggest victory it will ever have. All over this city tonight young
men, boys... will be joining the IRA and you will reap a whirlwind.
Thank you.
- Mr. Cooper, what do you say to those people that might be
joining and what message do you want to give to them?
- I feel very ill-equipped to do any preaching to them after
today.
(...)
- And I would say... I would say to yourselves, to British
journalists... go home to your people, to your government and tell
your people what was done in their name on the streets of Derry
today. The paratroopers moved in last night and waited in the
streets of Derry to mow us down. And I would just like to say this
on behalf of us the families of the victims and the victims that we
will not rest until justice is done.
O meu pai - o Ogro - era sobrevivente de campo de concentração -
veja este texto - e aí desde muito pequeno eu tinha que
lidar com a idéia de que certas pessoas deixam de ser consideradas
humanas. E o livro que eu reli mais vezes é o "A vida dos animais", que tem este parágrafo aqui,
"Não é por ter empreendido uma guerra expansionista, e perdido, que
os alemães de uma determinada geração ainda hoje são vistos como
estando um pouco à margem da humanidade, como se ainda tivessem de
fazer ou ser algo especial para poderem ser readmitidos em seu seio.
Aos nossos olhos eles perderam sua humanidade devido a uma certa
ignorância voluntária de sua parte. Nas circunstâncias do tipo de
guerra movido por Hitler, a ignorância pode ter sido um mecanismo
útil de sobrevivência, mas essa é uma desculpa que, com admirável
rigor moral, nos recusamos a aceitar. Na Alemanha, dizemos, se
ultrapassou uma determinada linha, o que levou as pessoas para além
do assassinato e da crueldade normais da guerra, conduzindo-as a um
estado que só podemos chamar de pecado. A assinatura dos artigos de
capitulação e o pagamento de reparações não puseram um fim ao estado
de pecado. Ao contrário, se diz, uma doença da alma continuou a
marcar aquela geração. Marcou aqueles cidadãos do Reich que
cometeram más ações, mas também aqueles que, por qualquer razão,
permaneceram na ignorância dessas ações. Marcou assim praticamente
todos os cidadãos do Reich. Só os que estavam nos campos eram
inocentes.
...e este trecho:
"A pergunta a ser feita não deveria ser: temos algo em comum --
razão, autoconsciência, alma -- com os outros animais? (E o
corolário que se segue é que, se não tivermos, estamos autorizados a
tratá-los como quisermos, aprisionando-os, matando-os,
desrespeitando seus cadáveres.) Volto aos campos de extermínio. O
horror específico dos campos, o horror que nos convence de que
aquilo que aconteceu ali foi um crime contra a humanidade, não
reside no fato de que a despeito de os matadores partilharem com
suas vítimas a condição de humanos, eles as terem tratado como
piolhos. Isso é abstrato demais. O horror está no fato de os
matadores terem recusado a se imaginar no lugar de suas vítimas,
assim como todo mundo. Disseram: `São eles naqueles vagões de
gado passando'. Não disseram: `Como seria para mim estar naquele
vagão de gado?'. Disseram: `Devem ser os mortos que estão sendo
queimados hoje, pesteando o ar e caindo em forma de cinza em cima
dos meus repolhos'. Não disseram: `Como seria se eu estivesse
queimando?'. Não disseram: `Estou queimando, estou me transformando
em cinzas'.
"Em outras palavras, eles fecharam seus corações. O coração é
sítio de uma faculdade, a simpatia, que, às vezes, nos permite
partilhar o ser do outro. A simpatia tem tudo a ver com o sujeito e
pouco a ver com o objeto, o `outro', como percebemos de imediato
quando pensamos no objeto não como um morcego (`Posso partilhar o
ser de um morcego?'), mas como outro ser humano. Certas pessoas têm
a capacidade de se imaginar como outra pessoa, há pessoas que não
têm essa capacidade (quando essa falta é extrema, chamamos essas
pessoas de psicopatas), e há pessoas que têm a capacidade, mas
escolhem não exercê-la.
"Apesar de Thomas Nagel, que provavelmente é um bom homem, apesar
de Tomás de Aquino e de René Descartes, com os quais tenho maior
dificuldade de simpatizar, não há limite para a nossa capacidade de
perceber pelo pensamento o ser de outrem. Não há limites para a
imaginação simpatizante. Se querem uma prova, pensem no seguinte.
Alguns anos atrás, escrevi um livro chamado A casa da rua
Eccles. Para escrever esse livro, tive de penetrar com o pensamento
na existência de Marion Bloom. Não sei se consegui ou não. Mas se
não consegui, não vejo por que me convidaram para vir hoje aqui. De
qualquer forma, a questão é a seguinte: Marion Bloom nunca
existiu. Marion Bloom é uma criatura da imaginação de James Joyce.
Se sou capaz de pensar a existência de um ser que nunca existiu, sou
capaz de pensar a existência de um morcego ou de um chimpanzé ou de
uma ostra, de qualquer ser que participe comigo do substrato da
vida.
"Volto uma última vez aos locais de morte que estão à nossa
volta, aos locais de abate para os quais, em um imenso esforço
comum, fechamos nossos corações. Ocorre a cada dia um novo
Holocausto e, no entanto, até onde posso enxergar, nosso
ser moral permanece intocado. Isso não nos afeta. Ao que parece,
podemos fazer qualquer coisa e sair limpos.
"Apontamos o dedo para os alemães, poloneses e ucranianos que
sabiam e não sabiam das atrocidades cometidas à sua volta. Gostamos
de pensar que ficaram internamente marcados pelos efeitos daquela
forma especial de ignorância. Gostamos de pensar que, em seus
pesadelos, aqueles cujo sofrimento se recusaram a registrar voltam
para assombrá-los. Gostamos de pensar que eles acordavam exaustos de
manhã e morriam de cânceres terríveis. Mas provavelmente não foi
assim. As evidências apontam para a direção contrária: que podemos
fazer tudo e escapar ilesos; que não existe castigo."
...e hoje em dia eu considero que a gente tem um ranking de quem é
mais humano e quem não é, e que a gente tem que decidir - conscientemente, a toda hora - como esse ranking vai funcionar...
quando a gente é vegano é fácil a gente ver um bife como o cadável de
um brother, e quando alguém faz algo muito absurdo com a gente, como
isso aqui, e nunca tenta consertar,
a gente tem a obrigação de tratar aquela pessoa como alguém que
"perdeu a sua humanidade".
O Bloody Sunday é sobre algo muito grande - um massacre - mas ele
serve pra gente pensar sobre coisas bem menores - como quais são os
modos possíveis, e adequados, da gente lidar com acusações falsas e
com passar a ser tratado como um pária num determinado grupo. O "Come Hell or High
Water" tem uma seção sobre "creating pariahs"; dá pra ler ela aqui,
tanto no original em inglês quanto na tradução pra português, mas se
você estiver no celular você vai pecisar do truque dos "links curtos" pra ir pra página certa de cada PDF:
ComeHellP47 (p.49) Creating pariahs
ComeHellPtP61 Criando párias
O jeito "moderno" da gente lidar com uma situação assim é a gente
dizer que "não dá pra fazer nada", e a gente ir num psiquiatra e
se entupir de remédios. Mas vamos voltar ao Bloody Sunday, que é de
outra época, e vamos pensar em cada pessoa do filme como um pedaço da
gente... depois de algo muito injusto e muito absurdo alguns pedaços
da gente vão se juntar ao IRA, e outros vão ser como o Ivan Cooper,
que vê isso como natural e inevitável, e diz "you will reap a
whirlwind" e "I feel very ill-equipped to do any preaching to
them after today."
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