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Camille Paglia - Personas Sexuais, cap. 1

https://en.wikipedia.org/wiki/Sexual_Personae (1990)
http://www.amazon.com/Sexual-Personae-Camille-Paglia-ebook/dp/B00B4NLWWM
http://www.estantevirtual.com.br/b/camille-paglia/personas-sexuais/1845800352
http://anggtwu.net/SCANS/camille_paglia_personas_sexuais_cap_1.pdf

A edição em português (Companhia das Letras, 1992) está fora de catálogo
há muito tempo. O texto abaixo é uma OCRização do cap.1 do livro, revisada
manualmente. Ainda falta eu colocar o texto das "N.T."s e das notas numeradas.
A primeira palavra de cada parágrafo abaixo é um link para aquele parágrafo.

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1. SEXO E VIOLÊNCIA, OU NATUREZA E ARTE

No princípio, era a natureza. Pano de fundo a partir do qual e contra o qual se formaram nossas idéias a respeito de Deus, a natureza continua sendo o supremo problema moral. Não podemos esperar entender o sexo e as identidades sexuais humanas enquanto não esclarecermos nossa atitude em relação a ela. O sexo é um subconjunto da natureza. Sexo é o natural no homem.

A sociedade é uma construção artificial, uma defesa contra o poder da natureza. Sem sociedade, estaríamos sendo jogados de um lado para outro nas tempestades do mar da barbárie que é a natureza. Podemos alterar essas formas, lenta ou subitamente, mas nenhuma transformação na sociedade vai mudar a natureza. Somos apenas uma dentre a multidão de espécies sobre as quais a natureza exerce indiscriminadamente sua força. A natureza tem um programa mestre que mal podemos conhecer.

A vida humana teve início na fuga e no medo. A religião surgiu de rituais de propiciação, sortilégios para aplacar a violência dos elementos. Até hoje, são poucas as comunidades nas regiões crestadas pelo calor ou agrilhoadas pelo gelo. O homem civilizado esconde de si mesmo a extensão de sua subordinação à natureza. A grandiosidade da cultura, a consolação da religião absorvem suas atenções e conquistam sua fé. Mas, basta a natureza dar de ombros e tudo cai em ruínas. Incêndios, inundações, raios, tufões, furacões, vulcões, terremotos - em qualquer parte, a qualquer hora. A tragédia abate-se sobre os bons e os maus. A vida civilizada exige um estado de ilusão. A idéia da benevolência última da natureza e de Deus é o mais poderoso dos mecanismos de sobrevivência do homem. Sem ela, a cultura reverteria ao medo e ao desespero.

Sexualidade e erotismo formam a complexa intersecção de natureza e cultura. As feministas supersimplificam grosseiramente o problema do sexo quando o reduzem a uma questão de convenção social: é só reordenar a sociedade, eliminar a desigualdade sexual, purificar os papéis sexuais, que reinarão a felicidade e a harmonia. Neste ponto o feminismo, como todos os movimentos sociais dos últimos duzentos anos, é herdeiro de Rousseau. O contrato social (1762) começa dizendo: "O homem nasce livre, e por toda parte está acorrentado".

Colocando a benigna natureza romântica contra a sociedade corrupta, Rousseau produziu a linha progressivista na cultura do século XIX, para a qual a reforma social era o meio de alcançar o Paraíso na terra. A bolha dessas esperanças foi estourada pelas catástrofes de duas guerras mundiais. Mas o rousseauísmo tornou a renascer na geração do pós-guerra dos anos 60, da qual se desenvolveu o feminismo contemporâneo.

Rousseau rejeita o pecado original, a visão pessimista do cristianismo de que o homem nasce impuro, com uma tendência para o mal. A idéia de Rousseau, que deriva de Locke, da bondade inata do homem levou ao ambientalismo social, hoje a ética dominante nos serviços sociais, códigos penais e terapias behavioristas americanos. Pressupõe que a agressão, a violência e o crime resultam da privação social - um bairro pobre, um lar ruim. Assim, o feminismo culpa a pornografia pelo estupro, e, por um raciocínio presunçosamente circular, interpreta os surtos de sadismo como uma reação violenta contra o próprio feminismo. Mas estupro e sadismo têm estado presentes em toda a história, e, em certos momentos, em todas as culturas.

Este livro adota a opinião de Sade, o menos lido dos grandes escritores da literatura ocidental. Sua obra é uma abrangente crítica satirica a Rousseau, escrita na década seguinte à primeira experiência rousseauísta fracassada, a Revolução Francesa, que terminou não em paraíso político, mas no inferno do Reinado do Terror. Sade segue Hobbes e não Locke. A agressão vem da natureza; é o que Nietzsche chamará de vontade de poder. Para Sade, voltar à natureza (o imperativo romântico que ainda impregna nossa cultura, dos conselheiros sexuais aos comerciais de cereais) era dar rédea solta à violência e ao desejo. Eu concordo. A sociedade não é a criminosa, mas a força que contém o crime. Quando os controles sociais enfraquecem, a crueldade inata do homem vem à tona. O estuprador não é criado por más influências sociais, mas por uma falha de condicionamento social. As feministas, buscando eliminar do sexo as relações de poder, colocaram-se contra a própria natureza. Sexo é poder. Identidade é poder. Na cultura ocidental, não há relações que não sejam de exploração. Todos matam para viver. A lei natural e universal de criação a partir da destruição opera tanto na mente como na matéria. Como afirma Freud, herdeiro de Nietzsche, identidade é conflito. Cada geração passa seu arado sobre os ossos dos mortos.

O liberalismo moderno sofre de contradições não resolvidas. Exalta o individualismo e a liberdade, e sua ala radical condena as ordens sociais como opressivas. Por outro lado, espera que o governo seja o provedor material de todos, um feito só alcançável mediante a expansão da autoridade de uma burocracia inchada. Em outras palavras, o liberalismo define o governo como um pai tirano, mas exige que ele aja como uma mãe que amamenta. O feminismo herdou essas contradições. Encara toda hierarquia como repressiva, uma ficção social; todo aspecto negativo na mulher é uma mentira masculina, destinada a mantê-la em seu lugar. O feminismo excedeu sua missão, a busca de igualdade política para as mulheres, e acabou rejeitando a contingência, ou seja, a limitação humana pela natureza ou pelo destino.

Liberdade sexual, liberação sexual. Uma ilusão moderna. Somos animais hierárquicos. É só varrer uma hierarquia, que outra tomará seu lugar, talvez menos palatável que a primeira. Há hierarquias na natureza e hierarquias alternativas na sociedade. Na natureza, a força bruta é a lei, a sobrevivência do mais capaz. Na sociedade, existem proteções para os fracos. A sociedade é nossa frágil barreira contra a natureza. Quando o prestígio do Estado e da religião anda baixo, os homens são livres, mas acham a liberdade intolerável e buscam novos meios de escravizar-se, por meio das drogas ou da depressão. Minha teoria é que, sempre que se busca ou se alcança a liberdade sexual, o sadomasoquismo não vem muito atras. O romantismo sempre se transforma em decadência. A natureza é um duro capataz. É o martelo e a bigorna, esmagando a individualidade. A liberdade perfeita seria morrer por terra, ar, água e fogo.

O sexo é um poder muito mais sombrio do que admite o feminismo. As terapias sexuais behavioristas julgam possível o sexo sem culpa, impecável. Mas o sexo sempre foi cercado de tabu, independentemente de cultura. O sexo é o ponto de contato entre o homem e a natureza, onde a moralidade e as boas intenções caem diante de impulsos primitivos. Chamei esse ponto de intersecção. Essa intersecção é a misteriosa encruzilhada de Hecate, onde tudo retorna à noite. O erotismo é um reino tocaiado por fantasmas. É o lugar além dos confins, ao mesmo tempo amaldiçoado e encantado.

Este livro mostra quanta coisa, na cultura, vai contra o que mais gostaríamos. A integração de corpo e mente humanos é um problema profundo, que não será resolvido com sexo recreativo nem com uma expansão dos direitos civis femininos. A encarnação, limitação da mente pela matéria, é um ultraje à imaginação. Igualmente ultrajante é o sexo, que não escolhemos, mas que a natureza nos impôs. Nossa fisicalidade é um tormento, nosso corpo a árvore da natureza na qual Blake nos vê crucificados.

O sexo é daimônico. Este termo, corrente nos estudos sobre o romantismo realizados nos últimos 25 anos, vem do grego daimon, que significa um espírito de divindade inferior à dos deuses do Olimpo (daí minha pronúncia "daimônico"). Édipo, expulso, torna-se um daimon em Colona. A palavra passou a significar a sombra guardiã do homem. O cristianismo transformou daimônico em demoníaco. Os daimons gregos não eram maus - ou melhor, eram ao mesmo tempo bons e maus, como a própria natureza, na qual viviam. O inconsciente de Freud é um domínio daimônico. De dia, somos criaturas sociais, mas à noite mergulhamos no mundo dos sonhos, onde reina a natureza, onde não existe lei mas apenas sexo, crueldade e metamorfose. O próprio dia é invadido pela noite daimônica. De instante a instante, a noite pisca na imaginação, no erotismo, subvertendo nossas tentativas de virtude e ordem, dando a objetos e pessoas uma aura misteriosa, que nos é revelada pelos olhos do artista.

O caráter espectral do sexo está implícito na brilhante teoria do "romance familiar" de Freud. Todos temos uma constelação incestuosa de personas sexuais, que levamos do berço à cova, e que determina a quem e como amamos ou odiamos. Todo encontro com amigo ou inimigo, todo choque com a autoridade ou submissão a ela traz os traços perversos do romance familiar. O amor é um teatro lotado, pois, como observa Harold Bloom: "Não podemos abraçar (sexualmente ou de outro modo) uma pessoa, sem abraçar todo o seu romance familiar".1 Quase nada conhecemos ainda do mistério da cathexis, o investimento de libido em certas pessoas ou coisas. O elemento de livre-arbítrio no sexo ou na emoção é pequeno. Como sabem os poetas, a paixão é irracional.

Como a arte, o sexo está cheio de símbolos. Romance familiar significa que o sexo adulto é sempre uma representação, uma atuação ritualística derivada de realidades passadas. Um erotismo inteiramente humanitário talvez seja impossível. Em algum ponto de todo romance familiar há hostilidade e agressão, os desejos homicidas do inconsciente. As crianças são monstros de desenfreado egoísmo e vontade porque vêm diretamente da natureza, hostis sugestões de imoralidade. Carregamos essa vontade daimônica conoseo para sempre. A maioria das pessoas a esconde com preceitos éticos adquiridos, e só a enfrenta nos sonhos, que logo esquece ao acordar. A vontade de poder é inata, mas os roteiros do romance familiar são aprendidos. Os seres humanos são as únicas criaturas nas quais a consciência está tão enredada com o instinto animal. Na cultura ocidental, jamais pode haver um encontro puramente físico ou despido de ansiedade. Toda atração, todo esquema de contato, todo orgasmo é modelado por sombras psíquicas.

A busca de liberdade por meio do sexo está condenada ao fracasso. No sexo, dominam a compulsão e a velha Necessidade. As personas sexuais do romance familiar são apagadas pela força maremótica da regressão, o movimento para trás, para a dissolução primeva, que Ferenczi identifica com o oceano. Todo orgasmo é um domínio, uma rendição, ou uma inovação. A natureza não tem nenhum respeito pela identidade humana. Por isso tantos homens se viram para o lado ou fogem depois do sexo, porque sentiram a aniquilação do daimônico. O amor ocidental é um deslocamento de realidades cósmicas. É um mecanismo de defesa que racionaliza forças desgovernadas e ingovernáveis. Como a religião primitiva, é um artifício que nos possibilita controlar nosso medo primitivo.

Não se pode entender o sexo, porque não se pode entender a natureza. A ciência é um método de análise lógica das operações da natureza. Aliviou a ansiedade humana em relação ao cosmos, demonstrando a materialidade das forças da natureza, e sua freqüente previsibilidade. Mas a ciência vive correndo atrás da bola. A natureza viola suas próprias regras sempre que quer. A ciência não pode evitar um único raio. A ciência ocidental é produto da mente apolínea: espera que, pela denominação e classificação, pela fria luz do intelecto, a noite arcaica seja repelida e derrotada.

Nome e pessoa fazem parte da busca de forma do Ocidente, que insiste na identidade distinta dos objetos. Denominar é conhecer; conhecer ê controlar. Pretendo demonstrar que a grandeza do Ocidente vem dessa certeza ilusória. A cultura do Extremo Oriente jamais lutou assim contra a natureza. A submissão, e não o confronto, é a regra. A meditação budista busca a unidade e harmonia da realidade. A física do século XX, fechando o círculo de volta a Heráclito, postula que toda matéria está em movimento. Em outras palavras, não existem coisas, só energia. Mas essa percepção não foi absorvida pela imaginação, pois anula as crenças intelectuais e morais do Ocidente.

O ocidental conhece por meio do olhar. As relações perceptivas estão no âmago de nossa cultura, e produziram nossas titânicas contribuições à arte. Caminhando em meio à natureza, vemos, identificamos, nomeamos, reconhecemos. Esse reconhecimento é nosso apotropaion, ou seja, nosso isolamento do medo. O reconhecimento é cognoscência ritual, uma compulsão de repetição. Dizemos que a natureza é bela. Mas esse julgamento estético, que nem todos os povos têm partilhado, é outra formação de defesa, desgraçadamente inadequada para abranger a totalidade da natureza. O que é bonito na natureza se limita à fina película do globo sobre o qual nos amontoamos. É só arranhar essa película, que surgirá a feiúra daimônica da natureza.

Nossa concentração no belo é uma estratégia apolínea. As folhas e flores, os pássaros, as montanhas são um desenho à la colcha de retalho pelo qual mapeamos o conhecido. O que o Ocidente reprime em sua visão da natureza é o ctônio, que significa "da terra" - mas das entranhas da terra, não da superfície. Jane Harrison usa o termo para a religião pré-olímpica grega, e eu o adoto como um substituto para dionisíaco, que se contaminou com gracejos vulgares. O dionisíaco não é nenhum piquenique. São as realidades crônicas de que foge Apolo, o triturar cego da força subterrânea, o longo e lento sugar, a treva e a lama. É a desumanizante brutalidade da biologia e da geologia, o desperdício e derramamento de sangue darwinianos, a miséria e podridão que temos de barrar da consciência, a fim de manter nossa integridade apolínea como pessoas. A ciência e a estética ocidentais são tentativas de revisar esse horror dando-lhe uma forma mais palatãvel para a imaginação.

O daimonismo da natureza ctônica é 0 segredo indecente do Ocidente. Os humanistas modernos fizeram do "sentido trágico da vida" a pedra angular da compreensão madura. Definiram a mortalidade humana e a transitoriedade do tempo como temas supremos da literatura. Também nisso vemos, outra vez, fuga, e até mesmo sentimentalismo. O sentimento trágico da vida é uma resposta parcial à experiência. É um reflexo da resistência do Ocidente à natureza, e da falsa impressão que tem dela, combinadas com os erros do liberalismo, que em sua romântica filosofia da natureza tem seguido mais o rousseauísta Wordsworth do que o daimônico Coleridge.

A tragédia é o mais ocidental dos gêneros literários. Só apareceu no Japão no final do século XIX. A vontade ocidental, insurgindo-se contra a natureza, dramatizou sua própria e inevitável queda como um componente humano universal, o que ela não é. Uma das ironias da história literária é o nascimento da tragédia no culto de Dioniso. A destruição do protagonista lembra a matança de animais e, anteriormente, de seres humanos reais em rituais arcaicos. Não é por acaso que a tragédia, como a conhecemos, data do apolíneo século V a.C. da grandeza de Atenas, cuja obra fundamental é a Oréstia, de Ésquilo, uma celebração da derrota do poder ctônico. O drama, gênero dionisíaco, voltou-se contra Dioniso ao passar da mimese para o ritual, ou seja, da ação para a representação. O "piedade e medo" de Aristóteles é uma promessa quebrada, um pedido de visão sem horror.

Poucas tragédias gregas se adequam inteiramente ao comentário humanista de que foram objeto. O resíduo bárbaro não se desprega. Mesmo no século V a.C., como veremos, surgiu uma resposta satírica ao teatro apolinizado, nas peças decadentes de Eurípides. Entre os problemas que se colocam para uma avaliação precisa da tragédia grega, está não apenas a perda de três quartos do acervo original de obras, mas a não-sobrevivência de qualquer peça satírica completa. Esse era o final da trilogia clássica, um obsceno teatro cômico de variedades. Na tragédia grega, a comédia sempre teve a última palavra. A crítica moderna projetou uma grande seriedade vitoriana - e, acho, protestante - sobre a cultura pagã, que ainda hoje abafa o ensino das humanidades. Paradoxalmente, a aceitação das bárbaras realidades ctônicas conduz não à tristeza, mas ao humor. Daí a estranha risada de Sade, seu humor em meio às mais fantásticas crueldades. Pois a vida não é uma tragédia, mas uma comédia. A comédia nasce do choque entre Apolo e Dioniso. A natureza está sempre puxando o tapete de debaixo de nossos pomposos ideais.

São raras as protagonistas femininas nas tragédias. A tragédia é um paradigma masculino de ascensão e queda, um gráfico em que os clímax dramáticos e sexuais se encontram em sombria analogia. O clímax é outra invenção moderna. As histórias tradicionais orientais são picarescas, encadeamentos horizontais de incidentes. Têm pouco suspense ou sentido de final. O agudo pico vertical da narrativa ocidental, como, depois, da música orquestral, é exemplificado por Édipo rei, de Sófocles, cujo momento de intensidade máxima Aristóteles chama de peripeteia, reversão. O clímax dramático ocidental foi produzido pelo agon da vontade masculina. Identidade através da ação. A ação é a rota de fuga da natureza, mas toda ação completa o círculo e retorna às origens, o útero-túmulo da natureza. Édipo, tentando escapar de sua mãe, corre direto para os braços dela. A narrativa ocidental é uma história policial, um processo de detecção. Mas, como o que se detecta é insuportável, cada revelação leva a outra repressão.

As grandes mulheres da tragédia - Medéia e Fedra, de Eurípides, Cleópatra e lady Macbeth, de Shakespeare, Fedra, de Racine - desviam-se de sua identidade sexual por sua relação com a ação masculina, que rompe esse vínculo. A mulher trágica é menos moral que o homem. Sua vontade de poder é ostensiva. Suas ações estão sob uma nuvem ctônica. São um conduto do irracional, abrindo o gênero a intrusões da força bárbara que o drama deixou de fora em sua origem. A tragédia é um veículo ocidental de teste e purificação da vontade masculina. A dificuldade para enxertar-lhe protagonistas femininas resulta não do preconceito masculino, mas de instintivas estratégias sexuais. A mulher introduz crueldade bruta nas tragédias porque é ela o problema que o gênero tenta corrigir.

A tragédia faz um jogo masculino, um jogo que ela mesma inventou para arrancar a vitória das garras da derrota. O dilema humano decisivo não é a escolha imperfeita, a ação imperfeita, ou mesmo a morte. O mais grave desafio às nossas esperanças e sonhos é a confusa atividade biológica normal, que prossegue dentro de nós e fora de nós a tóda hora de todo dia. A consciência é uma pobre refém de seu envoltório de carne, cujos impulsos, circuitos e murmúrios secretos ela não pode deter nem acelerar. É esse o drama crônico, que não tem clímax, mas apenas uma interminável ronda, ciclo após ciclo. O microcosmo reflete o macrocosmo. O livre-arbítrio é natimorto nas células vermelhas de nosso corpo, pois não há livre-arbítrio na natureza. Nossas escolhas nos vêm preembaladas e por entrega especial, moldadas por mãos que não são as nossas.

A inospitalidade da tragédia para com a mulher vem da inospitalidade da natureza para com o homem. A identificação da mulher com a natureza era universal na pré-história. Nas sociedades de caça ou agrárias, que dependiam da natureza, a femealidade era cultuada como um princípio imanente de fertilidade. Quando a cultura progrediu, os ofícios e o comércio proporcionaram uma concentração de recursos que libertou o homem dos caprichos do tempo e das restrições da geografia. Deixando-se a natureza um passo atrás, a femealidade recuou em importância.

As culturas budistas mantiveram os antigos sentidos da femealidade muito tempo depois que o Ocidente a eles renunciou. Macho e fêmea, o yang e yin chineses, são poderes que se equilibram e interpenetram no homem e na natureza, a que a sociedade esta subordinada. Esse código de aceitação passiva tem raízes na Índia, terra de súbitos extremos, onde urna monção pode eliminar 50 mil pessoas do dia para a noite. A femealidade das religiões de fertilidade tem sempre dois gumes. A deusa da natureza indiana Kali é criadora e destruidora, concedendo benesses com um conjunto de braços e cortando gargantas com o outro. É a mulher cercada de caveiras. A ambivalência moral das grandes deusas-mães tem sido convenientemente esquecida pelas feministas americanas que as ressuscitaram. Não podemos agarrar a lâmina nua da natureza sem derramar nosso sangue.

Desde o início, a cultura ocidental desviou-se da femealidade. A última grande sociedade ocidental a adorar os poderes femininos foi a Creta minóica. E, significativamente, caiu e não tornou a erguer-se. A causa imediata desse colapso _ terremoto, peste, ou invasão - não tem importância. A lição ê que a femealidade cultual não constitui garantia de força ou viabilidade cultural. O que sobreviveu, o que venceu as circunstâncias e deixou a marca de sua mente na Europa foi a cultura guerreira micênica, que nos chegou por intermédio de Homero. A vontade de poder masculina: micênicos do Sul e dórios do Norte iriam fundir-se para formar a Atenas apolínea, da qual veio a linha greco-romana da história ocidental.

As tradições apolínea e judeu-cristã são igualmente transcendentais. Quer dizer, buscam superar ou transcender a natureza. Apesar do elemento dionisíaco contrário da cultura grega, que pretendo discutir, o alto classicismo foi uma realização apolínea. O judaísmo, seita matriz do cristianismo, é o mais poderoso protesto contra a natureza. O Velho Testamento afirma que um deus pai fez a natureza, e que a diferenciação entre objetos e sexos proveio de sua masculinidade. O judeu-cristianismo, como a adoração grega dos deuses do Olimpo, é um culto do céu. É um estágio avançado na história da religião, que em toda parte teve início como culto da terra, veneração da fértil natureza.

A evolução do culto da terra para o culto do céu transfere a mulher para o reino inferior. Seus misteriosos poderes de procriação, e a semelhança de seus seios, barriga e quadris redondos com os contornos da terra, a põem no centro do simbolismo primitivo. Foi ela o modelo para as figuras de Grande Mãe que coroaram o nascimento da religião em todo o mundo. Ao contrário, como mostrarei ao discutir Hollywood no livro que dará seqüência a este, os objetos de culto são prisioneiros da inflação de seu próprio simbolismo. Todo totem vive em tabu.

A mulher era um ídolo da magia do ventre. Ela parecia inchar e dar à luz por si só. Desde o começo dos tempos, a mulher parece um ser estranho. O homem cultuava-a mas temia-a. Era o negro bucho que o cuspira para fora e voltaria a devorá-lo. Os homens, juntando-se, inventaram a cultura como uma defesa contra a natureza feminina. O culto do céu foi o passo mais sofisticado nesse processo, pois essa transferência do locus criativo da terra para o céu é uma passagem da magia do ventre para a magia da cabeça. E dessa defensiva magia da cabeça veio a glória espetacular da civilização masculina, que ergueu a mulher consigo. Até a linguagem e a lógica que a mulher moderna usa para atacar a cultura patriarcal foram invenção do homem.

Daí os sexos se verem colhidos numa comédia de endividamento histórico. O homem, repelido por sua dívida com uma mãe física, criou uma realidade alternativa, um heterocosmo que lhe da a ilusão de liberdade. A mulher, a princípio satisfeita em aceitar a proteção do homem, mas agora inflamada por sua própria liberdade ilusória, invade os sistemas masculinos e suprime sua dívida com ele roubando-os. Por causa da magia da cabeça, ela negará que algum dia tenha havido um problema de sexo e natureza. Herdou a ansiedade da influência.

A identificação da mulher com a natureza é o componente mais perturbado e perturbador nessa discussão histórica. Terá sido verdade algum dia? Ainda será? A maioria das leitoras feministas discordará, mas acho que essa identificação não é mito, e sim realidade. Todos os gêneros da filosofia, ciência, grande arte, atletismo e política foram inventados pelos homens. Mas, pela lei prometéica de conflito e captura, a mulher tem o direito de tomar o que queira e disputar com o homem nos termos dele. Contudo, há um limite para o que ela pode alterar em si mesma e na relação do homem com ela. Todo ser humano tem de lutar com a natureza. Mas o fardo da natureza pesa mais sobre um dos sexos. Corn sorte, isso não limitará a realização da mulher, ou seja, sua ação no espaço social criado pelo homem. Mas tem de limitar o erotismo, ou seja, nossas vidas imaginativas no espaço sexual, que pode justapor-se ao espaço social, mas não lhe é idêntico.

Os ciclos da natureza são os ciclos da mulher. A femealidade biológica é uma seqüência de retornos circulares, que começam e acabam no mesmo ponto. A centralidade da mulher dá-lhe identidade estável. Ela não precisa tornar-se, mas apenas ser. Sua centralidade é um grande obstáculo ao homem, cuja busca de identidade ela bloqueia. Ele precisa transformar-se num ser independente, isto é, um ser livre dela. Se não o fizer, simplesmente retornará a ela. A reunião com a mãe é um canto de sereia que obceca nossa imaginação. Antes havia felicidade, e agora há luta. Talvez na origem das fantasias arcádicas sobre uma era de ouro perdida estejam tênues lembranças da vida antes da traumática separação do nascimento. A idéia ocidental de história como um movimento propulsor para o futuro, um desígnio progressivo ou providencial, que atingirá o clímax na revelação da Segunda Vinda, é uma formulação masculina. Mulher nenhuma, admito, poderia ter cunhado tal idéia, já que se trata de uma estratégia de evasão da natureza cíclica da mulher, na qual o homem tem horror de se ver apanhado. A história evolucionária ou apocalíptica é uma lista de desejos masculina, com um final feliz, um pico fálico.

A mulher não sonha com a fuga transcendental ou histórica ao ciclo natural, já que ela é esse ciclo. Sua maturidade sexual significa casamento com a Lua, crescendo e minguando nas fases lunares. Lua, mês, menstruação: mesma palavra, mesmo mundo(N.T.) Os antigos sabiam que a mulher está presa ao calendário da natureza, um compromisso que não pode recusar. O padrão grego que vai de livre-arbítrio a hybris e tragédia é um drama masculino, uma vez que a mulher jamais se iludiu (até recentemente) com a miragem do livre-arbítrio. Ela sabe que não há livre-arbítrio, já que ela não é livre. Não tem opção senão aceitar. Deseje ou não a maternidade, a natureza a atrela ao bruto e inflexível ritmo da lei da procriação. O ciclo menstrual é. um despertador que não pode ser parado enquanto a natureza não quiser.

O aparelho reprodutor da mulher e imensamente mais complicado que o do homem, e ainda mal compreendido. Tudo pode dar errado, ou causar angústia mesmo dando certo. A mulher ocidental está em agônica relação com o seu próprio corpo: para ela, normalidade biológica é sofrimento, e a saúde uma doença. Afirma-se que a dismenorréia é uma doença da civilização, pois as mulheres das culturas tribais têm poucos males menstruais. Mas na vida tribal a mulher tem uma identidade abrangente ou coletiva; a religião tribal cultua a natureza e a ela subordina-se. É precisamente na avançada sociedade ocidental, que tenta melhorar ou ultrapassar a natureza, e que erige o individualismo e a realização pessoal como modelos, que a crua realidade da condição feminina emerge com dolorosa clareza. Quanto mais a mulher corre em busca de identidade e autonomia pessoais, quanto mais desenvolve sua imaginação, mais feroz será a luta com a natureza - quer dizer, com as obstinadas leis físicas de seu próprio corpo. E mais a natureza a punirá: não se atreva a ser livre! pois seu corpo não lhe pertence.

O corpo feminino é uma máquina ctônica, indiferente ao espírito que o habita. Organicamente, tem uma missão, a gravidez, que podemos passar a vida repelindo. A natureza só se importa com a espécie, jamais com os indivíduos: as humilhantes dimensões desse fato biológico são experimentadas de maneira mais direta pelas mulheres, que provavelmente por causa disso têm maior realismo e sabedoria que os homens. O corpo da mulher é um mar sobre o qual atua o movimento lunar das ondas. Indolentes e adormecidos, seus tecidos adiposos encharcam-se de água, e depois se enxugam de repente na maré alta hormonal. O edema é nossa recaída de mamífero no vegetal. A gravidez demonstra o caráter determinista da sexualidade da mulher. Toda mulher grávida tem o corpo e o ego tomados por uma força ctônica além do seu controle. Na gravidez desejada, é um sacrifício feliz. Mas na indesejada, iniciada por estupro ou azar, é um horror. Pois o feto é um tumor benigno, um vampiro que rouba para viver. O chamado milagre do nascimento é a natureza dando as cartas.

Todo mês, para a mulher, é uma nova derrota da vontade. A menstruação era chamada outrora de "maldição",(N.T.) uma referência à expulsão do Jardim do Éden, quando a mulher foi condenada a parir com dor por causa do pecado de Eva. A maioria das primeiras culturas cerca as mulheres menstruadas de tabus rituais. As judias ortodoxas ainda se purificam da sujeira menstrual com o mikveh, um banho ritual. As mulheres têm arcado com o fardo simbólico das imperfeições humanas, suas bases na natureza. O sangue menstrual é a mancha, a marca de nascença do pecado original, a imundície que a religião transcendental deve lavar do homem. Será essa identificação apenas fóbica, apenas misógina? Ou é possível que haja alguma coisa misteriosa no sangue menstrual, justificando sua ligação ao tabu? Sustentarei que não é o sangue menstrual em si que perturba a imaginação - por mais inestancável que seja esse corrimento vermelho - mas antes a albumina no sangue, os fiapos uterinos, a medusa placental desse mar feminino. Essa é a matriz ctônica da qual surgimos. Sentimos uma repugnância evolucionária pelo lodo, sítio de nossas origens biológicas. Todo mês, é destino da mulher enfrentar oabismo do tempo e do ser, o abismo que é ela mesma.

A Bíblia tem sido atacada por fazer da mulher a responsável pela queda no drama cósmico humano. Mas ao pôr um conspirador masculino, a serpente, como inimigo de Deus, o Gênesis se precavê e não leva sua misoginia longe demais. A Bíblia desvia-se do verdadeiro adversário de Deus, a natureza ctônica. A serpente não esta fora de Eva, mas nela. Ela é o jardim e a serpente. Anthony Storr diz sobre as bruxas: "Num nível muito primitivo, todas as mães são falicas".2 O Diabo é uma mulher. Os movimentos de emancipação modernos, descartando estereótipos que impedem o avanço social da mulher, recusam-se a reconhecer o daimonismo da procriação. A natureza e serpentina, um leito de cipós entrançados, plantas trepadeiras e rastejantes, tateantes dedos dormentes de fétida vida orgânica, que Wordsworth nos ensinou a chamar de belos. Os biólogos falam do cérebro reptílico do homem, a parte mais antiga de nosso sistema nervoso superior, sobrevivente matador da era arcaica. Eu digo que a mulher pré-menstrual levada à irritação ou à fúria ouve sinais do cérebro reptílico. Nela, a perversidade latente do homem é manifesta. Todo o inferno se desencadeia, o inferno da natureza ctônica, que o humanismo moderno nega e reprime. Em toda mulher pré-menstrual que luta para conter seu gênio, o culto do céu guerreia com o culto da terra.

A identificação da mulher com a natureza na mitologia é correta. A contribuição masculina à procriação é momentânea e transitória. A concepção é uma fração de tempo, outro dos nossos fálicos picos de ação, do qual o macho desliza inútil para fora. A mulher grávida é daimônica, diabolicamente completa. Como entidade ontológica, não precisa de nada nem de ninguém. Sustentarei que a mulher grávida, meditando nove meses sobre sua própria criação, é o modelo de todo solipsismo, que a atribuição histórica de narcisismo às mulheres é outro mito verdadeiro. A aliança masculina e o patriarcado foram o recurso a que o homem se viu obrigado, por seu terrível senso do poder da mulher, da impermeabilidade, da arquétipa confederação dela com a natureza ctônica. O corpo da mulher é um labirinto onde o homem se perde. Ê um jardim murado, 0 hortus conclusus medieval, onde a natureza faz sua daimônica bruxaria. A mulher é a fabricante primeva, a verdadeira Primeira Causa. Transforma um ranho de detrito numa rede de ser senciente, flutuando no serpentino cordão umbilical pelo qual traz todo homem na correia.

O feminismo tem sido simplista ao afirmar que os arquétipos femininos são falsidades politicamente motivadas dos homens. A repugnância histórica pela mulher tem uma base racional: o nojo é a reação adequada da razão à grosseria da natureza procriadora. A razão e a lógica, inspiradas pela ansiedade, são o domínio de Apolo, primeiro deus do culto do céu. O apolíneo é severo e fóbico, isolando-se friamente da natureza por sua pureza sobre-humana. Afirmo que a personalidade e as realizações ocidentais, para o melhor e para o pior, são em grande parte apolíneas. O grande adversário de Apolo, Dioniso, governa o ctônio, cuja lei é a femealidade procriadora. Como veremos, o dionisíaco é natureza líquida, um pântano miasmático que tem como protótipo o poço estagnado do útero.

Devemos perguntar se a equivalência entre macho e fêmea no simbolismo do Extremo Oriente foi tão culturalmente eficaz quanto a hierarquização de macho e fêmea no Ocidente. Que sistema beneficiou mais a mulher, em última análise? A ciência e a indústria ocidentais libertaram as mulheres dos trabalhos tediosos e do perigo. Máquinas fazem as tarefas domésticas. A pílula neutraliza a fertilidade. Parir não é mais fatal. E a linha apolínea da racionalidade ocidental produziu a agressiva mulher moderna, que pode pensar como o homem e escrever livros desagradáveis. A tensão e o antagonismo na metafísica ocidental elevaram os poderes corticais superiores humanos a grandes alturas. A maior parte da cultura ocidental é uma distorção da realidade. Mas a realidade deve ser distorcida; quer dizer, corrigida pela imaginação. A aquiescência budista ã natureza não é nem exata a respeito da natureza nem justa com o potencial humano. O apolíneo nos levou às estrelas.

Os arquétipos daimônicos da mulher, que enchem a mitologia mundial, representam a incontrolável proximidade da natureza. A tradição deles passa quase intacta dos ídolos pré-históricos, através da literatura e da arte, para o cinema moderno. A imagem básica é da femme fatale, a mulher fatal para o homem. Quanto mais se repele a natureza no Ocidente, mais a femme fatale reaparece, como um retorno do reprimido. É o espectro da consciência de culpa do Ocidente em relação ã natureza. Ê a ambigüidade moral da natureza, uma lua malévola a romper incessantemente o nevoeiro de nossos sentimentos de esperança.

O feminismo descarta a femme fatale como caricatura e calúnia. Se ela existiu, foi simplesmente uma vítima da sociedade, recorrendo às manhas destrutivas femininas pela falta de acesso ao poder político. A femme fatale era uma executiva manquée, sua energia neuroticamente desviada para o boudoir. Com essas técnicas de desmistificação, o feminismo se meteu numa enrascada. A sexualidade é um domínio sombrio de contradição e ambivalência. Nem sempre se pode entendê-lo por meio de modelos sociais, que o feminismo, como herdeiro do utilitarismo do século XIX, insiste em impor-lhe. A mistificação continuará a ser sempre a desordeira companheira do amor e da arte; Erotismo é mística; ou seja, a aura de emoção e imaginação que cerca o sexo. Não se pode "dar um jeito" nele, com códigos de conveniência social ou moral, seja da esquerda ou da direita política. Pois o fascismo da natureza é maior que o de qualquer sociedade. Há nas relações sexuais uma instabilidade daimônica que talvez tenhamos de aceitar.

A femme fatale é uma das mais mesmerizantes personas sexuais. Não é ficção, mas uma extrapolação de realidades biológicas, na mulher, que continuam sendo constantes. O mito da vagina dentada (vagina dentata) dos índios norte-americanos é uma transcrição hediondamente direta do poder feminino e do medo masculino. Metaforicamente, toda vagina tem dentes secretos, pois o macho sai com menos do que ao entrar. A mecânica básica da concepção exige ação do macho, mas apenas passiva receptividade da fêmea. O sexo, como uma transação mais natural que social, é pois na verdade uma espécie de drenagem da energia masculina pela plenitude feminina. Castração física e espiritual é o perigo que todo homem corre no intercurso com uma mulher. O amor é o sortilégio pelo qual ele adormece seu medo sexual. O vampirismo latente da mulher não é uma aberração social, mas um desenvolvimento de sua função maternal, para a qual a natureza a equipou com exaustiva minuciosidade. Para o homem, todo ato sexual é um retorno à mãe, e uma capitulação a ela. Para os homens, o sexo é uma luta por identidade. No sexo, o homem é consumido e novamente liberado pelo poder dentado que o deu ã luz, o dragão fêmea da natureza.

A femme fatale foi produzida pela mística da ligação entre mãe e filho. Uma das crenças modernas ê que sexo e procriação são medicamente, cientificamente, intelectualmente "controlãveis". Se mexermos bastante no mecanismo social, todos os problemas desaparecerão. Enquanto isso, o número de divórcios sobe às alturas. O casamento convencional, apesar de suas iniqüidades, represava o caos da libido. Quando o prestígio do casamento está em baixa, todo o pervemo daimonismo do instinto sexual vem à tona. O individualismo, o ego não contido pela sociedade, conduz à servidão mais grosseira da contenção pela natureza. Todo caminho que parte de Rousseau leva a Sade. A mística de nosso nascimento de mães humanas é uma das nuvens daimônicas que não podemos afastar com pequenos gritos de independência. Apolo pode desviar-se da natureza, mas não pode obliterá-la. Como seres emocionais e sexuais, seguimos o círculo todo. A velhice é uma segunda infância, em que revivem as mais antigas lembranças. De modo arrepiante, os pacientes em coma, de qualquer idade, encolhem-se automaticamente para a posição fetal, da qual têm de ser arrancados por enfermeiros. Estamos atados a nosso nascimento por inabaláveis visões da memória sensória.

Psicologias rousseauístas como o feminismo afirmam a benevolência última da emoção humana. Num sistema assim a femme fatale logicamente não tem lugar. Eu sigo Freud, Nietzsche e Sade em minha visão da amoralidade da vida instintual. Em certo nível, todo amor é combate, uma luta com fantasmas. Só somos a favor de alguma coisa sendo contra outra. Quem julga estar tendo encontros sexuais agradáveis, casuais, descomplicados, com amigo, esposo ou estranho, está bloqueando da consciência o emaranhado da psicodinâmica em ação, do mesmo modo como bloqueia os choques hostis de sua vida nos sonhos. O romance familiar atua o tempo todo. A femme fatale é uma das sofisticações do narcisismo da mulher, da ambivalente orientação para si mesma quase completa com o nascimento de um filho ou a transformação do esposo ou amante em filho.

As mães podem ser fatais para os filhos. Foi contra a mãe que os homens ergueram seu alto edifício de política e culto do céu. Ela é Medusa, em quem Freud vê o púbis feminino castrador e castrado. Mas a cabeleira de serpentes de Medusa é também o enredado matagal da natureza. Sua careta hedionda é o medo masculino do riso das mulheres. Aquela que dá a vida também bloqueia o caminho da liberdade. Assim, concordo com Freud que temos o direito de frustrar as compulsões procriativas da natureza, por meio da sodomia e do aborto. O homossexualismo masculino talvez seja a mais corajosa das tentativas de fugir à femme fatale e derrotar a natureza. Dando as costas à mãe medusina, em honra ou antipatia a ela, o homossexualmasculino é um dos grandes forjadores da identidade absolutista ocidental. Mas é claro que a natureza venceu, como sempre, fazendo da doença o preço do sexo promíscuo.

A permanência da femme fatale como persona sexual faz parte do incômodo peso do erotismo, sob o qual soçobram a ética e a religião. O erotismo é o ponto fraco da sociedade, pelo qual a natureza ctônica a invade. Ela pode aparecer como mãe medusina ou frígida ninfa, mascarando-se na brilhante luminosidade do grande fascínio apolíneo. Sua fria inatingibilidade convida, encanta e destrói. Não é uma neurótica, mas, se isso faz alguma diferença, uma psicopata. Ou seja, tem uma amoral ausência de afeto, uma serena indiferença pelo sofrimento dos outros, que convida e observa desapaixonadamente, para testar seu poder. Não se pode traduzir inteiramente, em termos masculinos, a mística da femme fatale. Vou falar em detalhes do menino bonito, uma das mais estonteantes personas sexuais do Ocidente. Contudo, o perigo do homme fatal, materializado no jovem prostituto de hoje, é que ele vai embora, desaparece atrás de outros amores, outras terras. Ê um errante, um caubói, um marinheiro. Mas o perigo da femme fatale é que ela fica, parada, plãcida, e paralisante. Sua permanência é um fardo daimônico, a ubiqüidade da Mona Lisa de Walter Pater, que sufoca a história. É um símbolo espinhoso da perversidade do sexo. Ela gruda.

Encaminhamo-nos, neste capítulo, para uma teoria da beleza. Acredito que o senso estético, como tudo mais até agora, é um desvio do ctônio. É um deslocamento de uma área de realidade para outra, análogo à passagem do culto da terra para o culto do céu. Ferenczi fala da substituição do nariz animal pelo olho humano, devido à nossa posição ereta. O olho é peremptório em seus julgamentos. Decide o que ver e por quê. Cada um de nossos olhares é tanto exclusão quanto inclusão. Nós escolhemos, comentamos e realçamos. Nossa idéia do belo é uma noção limitada, que não se pode aplicar ao submundo metamórfico da terra, um domínio cataclísmico de violência ctônica. Preferimos não ver essa violência em nossos passeios diários. Toda vez que dizemos que a natureza é bela, estamos fazendo uma prece, dedilhando as contas de nossas preocupações.

A fria beleza da femme fatale é outra transformação da feiúra crônica. As fêmeas animais são em geral menos bonitas que os machos. As penas sem graça da mãe pássaro constituem uma camuflagem, para proteger o ninho dos predadores. Os pássaros machos são criaturas de espetacular ostentação, tanto na plumagem quanto no porte, em parte para impressionar as fêmeas e vencer os rivais, e em parte para desviar os inimigos do ninho. Entre os seres humanos, a exibição ritual do macho é igualmente extrema, mas pela primeira vez a fêmea se torna um objeto de pródiga beleza. Por quê? A fêmea se enfeita não só para aumentar seu valor enquanto propriedade, como gostaria de desmistificar o marxismo, mas para assegurar sua desejabilidade. A consciência tornou-nos covardes a todos. Os animais não têm medo sexual, porque não são seres racionais. Agem sob um imperativo biológico puro. A mente, que possibilitou à humanidade adaptar-se e florescer como espécie, também complicou infinitamente nosso funcionamento como seres físicos. Vemos demais, e por isso temos de limitar severamente nossa visão. O desejo é cercado de todos os lados por ansiedade e dúvida. A beleza, um êxtase para os olhos, nos intoxica e nos permite agir. A beleza é nossa revisão apolínea do ctônio.

A natureza é um espetáculo darwiniano de comedores e comidos. Todas as fases da procriação são governadas pelo apetite: o intercurso sexual, dos beijos à penetração, consiste de movimentos de mal contida crueldade e consumo. A longa gravidez da fêmea humana e a extensa infância de seu bebê, que não se sustenta a si mesmo por sete anos ou mais, produziram o agon da dependência psicolôgica que esmaga o homem a vida inteira. O homem, justificadamente, teme ser devorado pela mulher, que é a procuradora da natureza.

A repressão é uma adaptação evolucionária que nos permite funcionar sob o fardo da consciência expandida. Pois aquilo de que temos consciência poderia nos levar à loucura. A grosseira gíria masculina fala dos órgãos genitais femininos como "talho" ou "racha". Freud observa que Medusa transforma os homens em pedra porque, à primeira vista, o garoto acha o órgão genital feminino uma ferida, de onde o pênis foi cortado. É de fato uma ferida, mas foi o bebê que foi cortado, com violência: o cordão umbilical é uma amarra, serrada por um grupo de resgate social. A necessidade sexual empurra o homem de volta a essa cena de sangue, mas ele não pode aproximar-se dela sem tremores de apreensão, que esconde com eufemismos de amor e beleza. Contudo, quanto menos bem-educado - ou seja, menos socializado - mais agudo será o seu senso da animalidade do sexo, e mais grosseira a sua linguagem. O casca-grossa desbocado é produto não do sexismo da sociedade, mas da ausência de sociedade. Pois a natureza é a mais desbocada de todos nós.

O atual avanço da mulher na sociedade não é uma viagem do mito para a verdade, mas do mito para um novo mito. A ascensão da mulher racional, tecnológica, pode exigir a repressão de realidades arquetípicas desagradáveis. Ferenczi observa: "As periódicas pulsações na sexualidade feminina (puberdade, menstruações, gravidezes e partos, climatério) exigem uma repressão muito mais poderosa da parte da mulher que a necessária para o homem".3 Em sua briga com a sociedade masculina, o feminismo precisa suprimir a prova mensal do domínio da mulher pela natureza ctônica. A menstruação e o parto são uma afronta à beleza e à forma. Em termos estéticos, são espetáculos de assustadora miséria. A vida moderna, com seus hospitais e produtos de papel, distanciou e sanitizou esses mistérios primitivos, como fez com a morte, que antes era uma horrorosa coisa domestica. Muitíssima coisa está sendo varrida para baixo do tapete: o espanto e terror que é nosso destino.

A crueza semelhante a uma ferida do órgão genital feminino é um símbolo da irredimibilidade da natureza ctônica. Em termos estéticos, o órgão genital feminino tem cores lúgubres, contornos inconstantes e arquitetura incoerente. Os órgãos genitais masculinos, por outro lado, embora se arrisquem a cair no ridículo por sua borrachosa indecisão (uma heroína de Silvia Plath pensa, memoravelmente, num "pescoço de peru, com moelas de peru"), têm um desenho matemático racional, uma sintaxe. Mas isso não é uma virtude absoluta, já que pode tender a confirmar o homem em suas muitíssimas percepções errôneas da realidade. A estética pára onde o sexo começa. G. Wilson Knight declara: "Todo amor físico é, de certo modo, uma vitória sobre segredos e repulsas físicos".4 O sexo é sujo e desordenado, um retorno ao que Freud chama de polimorfa perversidade do bebê, um animado refocilar em todos os fluidos do corpo. Santo Agostinho diz: "Nascemos entre fezes e urina". Essa visão misógina da saída do bebê, maculado pelo pecado, do canal de nascimento, está próxima da verdade crônica. Mas a excreção, pela qual a natureza uma vez na vida atua igualmente sobre os sexos, pode ser salva pela comédia, como vemos em Aristófanes, Rabelais, Pope e Joyce. A excreção encontrou um lugar na alta cultura. A menstruação e o parto são demasiado bárbaros para a comédia. Sua feiúra produziu o gigantesco deslocamento do status histórico da mulher como objeto sexual, cuja beleza se discute e modifica interminavelrnente. A beleza da mulher é um compromisso com sua perigosa fascinação arquetípica. Dá ao olho a consoladora ilusão de controle intelectual sobre a natureza.


Minha explicação para o domínio do homem na arte, ciência e política, um fato indiscutível da história, baseia-se numa analogia entre a fisiologia sexual e a estética. Afirmo que toda realização cultural é uma projeção, um desvio para a transcendência apolínea, e que os homens se destinam, anatomicamente, a ser projetores. Mas, assim como no caso de Édipo, o destino pode ser uma maldição.

A maneira como conhecemos o mundo, e como ele nos conhece, baseia-se em padrões de biografia sexual e geografia sexual. O que brota na consciência é formado antes pelo daimonismo dos sentidos. A mente é escrava do corpo. Não existe objetividade perfeita. Todo pensamento traz alguma carga emocional. Houvesse tempo ou energia para isso, podia-se fazer com que cada escolha. casual, da cor de uma escova de dentes à decisão sobre um menu, revelasse seu significado secreto no drama interior de nossas vidas. O reino do número, a cristalina matemática da pureza apolínea, foi inventado nos primeiros tempos pelo homem ocidental como refúgio contra o úmido emocionalismo e a espinhosa desordem da mulher e da natureza. A mulher que consegue sobressair em matemática destaca-se num sistema imaginado pelo homem para dominar a natureza. O número é a mais impositiva e menos natural das chupetas, a anelante esperança de objetividade do homem. É para o número que ele - e agora ela - se retira fugindo do lodaçal ctônico do amor, do ódio, e do romance familiar.

Mesmo hoje, em geral são os homens, mais do que as mulheres, que afirmam a superioridade da lógica sobre a emoção. E tendem a fazer isso, comicamente, nos momentos de maior caos emocional, que podem ter causado e não conseguem evitar. Os artistas e atores masculinos têm uma função cultural mantendo aberta a linha de emoção do domínio masculino para o feminino. Todo homem abriga um território feminino íntimo governado por sua mãe, da qual ele jamais consegue se livrar por completo. Desde o romantismo, a arte e o estudo da arte tornaram-se veículos para explorar a vida emocional reprimida do Ocidente, embora jamais saberiamos disso se julgássemos por metade da tediosa erudição que brotou a sua volta. A poesia é o elo de ligação entre o corpo e a mente. Toda idéia na poesia se funda na emoção. Toda palavra é um apalpamento do corpo. As múltiplas interpretações que cercam um poema refletem a violenta incontrolabilidade da emoção, na qual a natureza faz o que quer. Emoção é caos. Toda emoção benigna tem um reverso de negatividade. Assim, a fuga da emoção para o número é outra estratégia crucial do Ocidente apolíneo em sua longa luta com Dioniso.

Emoção é paixão, um continuum de erotismo e agressão. Amor e ódio não são opostos: há apenas mais paixão e menos paixão, uma diferença de quantidade, não de espécie. Viver em amor e paz é uma das maiores contradições que o cristianismo impôs a seus seguidores, um ideal impossível e artificial. Desde o romantismo, os artistas e intelectuais vêm se queixando das regras sexuais da Igreja, mas elas são apenas uma pequena parte da guerra cristã contra a natureza pagã. Só um santo pode manter o código de amor cristão. E os santos são brutais em suas exclusões: têm de deixar de fora um enorme volume de realidade, a realidade das personas sexuais e a da natureza. Amor a todos significa frieza para com alguma coisa ou alguém. Mesmo Jesus, lembremos, foi desnecessariamente rude com a própria mãe em Canaã.

O superfluxo crônico de emoção é um problema masculino. O homem tem de combater essa enormidade, que reside na mulher e na natureza. Ele só pode atingir a autonomia repelindo a nuvem daimônica que o engoliria: o amor materno, que bem poderíamos chamar de ódio materno. Amor materno, ódio materno, por ela ou dela, um imenso conglomerado de força natural. A igualdade política para as mulheres fará muito pouca diferença nesse torvelinho emocional que prossegue acima e abaixo da política, fora do esquema da vida social. Enquanto todos os bebês não nascerem de jarras de vidro, não cessará o combate entre mãe e filho. Mas num futuro totalitário, que tenha tirado a procriação das mãos da mulher, não haverá afeto nem arte. Os homens serão máquinas, sem dor, mas também sem prazer. A imaginação tem um preço, que pagamos todo dia. Não há como fugir das correntes biológicas que nos agrilhoam.

Que deu a natureza ao homem para se defender da mulher? Aqui chegamos à origem das realizações culturais do homem, que resultam tão diretamente de sua singular anatomia. Nossas vidas como seres físicos dão origem a metáforas bãsicas de apreensão, que variam muitíssimo entre os sexos. Aqui, não pode haver igualdade. O homem é sexualmente compartimentado. Genitalmente, está condenado a um perpétuo modelo de linearidade, foco, mira e pontaria. Tem de aprender a mirar. Sem mira, a urina e a ejaculação acabam num emporcalhamento infantil de si mesmo ou do ambiente. O erotismo da mulher é difundido por todo o corpo. Seu desejo de carícias preliminares continua sendo uma área de má comunicação entre os sexos. A concentração genital do homem é uma redução, mas também uma intensificação. Ele é vítima de indomáveis altos e baixos. A sexualidade masculina é inerentemente maníaco-depressiva. O estrogênio tranqüiliza, mas o androgênio excita. Os homens vivem em constante estado de ansiedade sexual, pisando nas brasas de seus hormônios. No sexo, como na vida, são impelidos para mais adiante - adiante do ego, adiante do corpo. Essa regra se aplica até no ventre. Todo feto torna-se fêmea se não estiver mergulhado em hormônio masculino, produzido por um sinal dos testículos. Antes do nascimento, portanto, o macho já está adiante da fêmea. Mas estar adiante é estar exilado do centro da vida. Os homens sabem que são exilados sexuais. Vagam pela terra em busca de satisfação, desejando e desprezando, jamais satisfeitos. Não há nada nesse movimento angustiado que a mulher possa invejar.

A metáfora genital do homem é concentração e projeção. A natureza dá-lhe concentração para ajuda-lo a vencer seu medo. O homem aborda a mulher em explosões de espasmódica concentração. Isso lhe dá a ilusão de controle temporário dos mistérios arquetípicos que o produziram. Dá-lhe a coragem de voltar. O sexo é metafísico para o homem de um modo que não é para a mulher. As mulheres não têm problemas a resolver pelo sexo. No físico e no psicológico, são serenamente auto-suficientes. Talvez prefiram realizar, mas não precisam. Não são empurradas para mais adiante por seus corpos refratários. Mas os homens estão em desequilíbrio. Têm de buscar, perseguir, cortejar ou tomar. Pombos no gramado, infelizmente: nesses rituais à beira do jardim, podemos saborear o pathos cômico do sexo. Quantas vezes avistamos um pombo macho fazendo avanços desesperados, inflados, para a fêmea, que repetidas vezes lhe dá as costas e se afasta indiferente. Mas, pela concentração e insistência, ele pode ganhar o dia. A natureza abençoou-o com o esquecimento de seu próprio absurdo. Sua objetividade é ao mesmo tempo uma dádiva e um fardo. Nos seres humanos, a concentração sexual é o instrumento do homem para recompor-se e conter à força o perigoso superfluxo ctônico de emoção e energia que identifico com a mulher e a natureza. No sexo, o homem é empurrado para o próprio abismo de que foge. Faz uma viagem de ida e volta ao não-ser.

Concentração para projetar-se mais adiante. A projeção masculina de ereção e ejaculação é um paradigma para toda projeção e conceitualização - da arte e filosofia à fantasia, alucinação e obsessão. As mulheres têm conceitualizado menos na história não porque os homens as impediram de fazê-lo, mas porque elas não precisam conceitualizar para existir. Deixo aberta a questão das diferenças cerebrais. Conceituação e mania sexual podem vir da mesma parte do cérebro masculino. O fetichismo, por exemplo, uma prática que, como a maioria das perversões sexuais, limita-se aos homens, é visivelmente uma atividade conceitualizante ou criadora de símbolos. A preferência comercial muitíssimo maior do homem pela pornografia é análoga.

Uma ereção é um pensamento, e o orgasmo um ato de imaginação. O homem tem de conseguir por força de vontade sua autoridade sexual diante da mulher, que é uma sombra de sua mãe e de todas as mulheres. O fracasso e a humilhação estão sempre à espreita. Nenhuma mulher tem de provar-se mulher do modo cruel que o homem tem de provar-se homem. Ele tem de atuar, senão o espetáculo não continua. A convenção social é irrelevante. Um fracasso é um fracasso. De qualquer modo, e ironicamente, o êxito sexual sempre acaba em frouxidão. Toda projeção masculina é transitória, e tem de ser renovada ansiosamente, eternamente. Os homens entram em triunfo, mas saem em decrepitude. O ato sexual imita cruelmente o declínio e queda da história. A aliança masculina é uma sociedade de autopreservação, uma reafirmação colegial por meio de esquemas de referência maiores, artificiais. A cultura é o férreo reforço, pelo homem, de suas projeções privadas sempre periclitantes.

Concentração e projeção são admiravelmente demonstradas pelo ato de urinar, uma das mais eficientes compartimentações da anatomia masculina. Freud acha que o homem primitivo se enaltecia com sua capacidade de apagar uma fogueira com um jato de urina. Coisa estranha de orgulhar-se, mas certamente além do âmbito da mulher, que torraria o traseiro se tentasse. O ato de urinar masculino é realmente um feito, um arco de transcendência. A mulher simplesmente molha o chão sobre o qual está. O urinar masculino é uma forma de comentário. Pode ser amistoso quando partilhado, mas muitas vezes é agressivo, como na desfiguração de monumentos públicos por astros do rock dos anos 60. Mijar em cima de alguma coisa é criticar. John Wayne urinou nas botas de um rabugento diretor, diante do elenco e da equipe. Este é gênero de auto-expressão que a mulher jamais dominará. Um cachorro que marca todo arbusto de uma quadra é um artista do grafite, deixando sua rude assinatura a cada levantada da perna. As mulheres, como as cadelas, se agacham presas à terra. Não há projeção além das fronteiras do ego. O espaço é reivindicado pela ocupação, o direito do posseiro.\NT{Jogo de palavras intraduzível com squatter, que tanto significa "o que se agacha" quanto "posseiro". (N. T.)}

O caráter desajeitado, solipsista, da fisiologia feminina é tediosamente evidente nos acontecimentos esportivos e concertos de rock, onde cinqüenta mulheres aguardam em fila para entrar nas cabines isoladas do toalete. Enquanto isso, seus amigos homens abrem e fecham o zíper e ficam em volta olhando o relógio e revirando os olhos. A idéia freudiana da inveja do pênis mostra-se muito real quando o homem no boteco lotado se alivia feliz da vida nos becos da meia-noite, para vexame de suas companheiras que já quase fazem xixi nas calças. Mas essa compartimentação ou isolamento da genitalidade masculina tem seu lado negro. Pode levar a uma dissociação de sexo e emoção, à tentação, promiscuidade e doença. O homossexual masculino moderno, por exemplo, busca êxtase na sordidez dos banheiros públicos, para as mulheres talvez o lugar menos erótico do mundo.

As metáforas de concentração e projeção do homem são ecos tanto do corpo quanto da mente. Sem elas, ele estaria desamparado diante do poder da mulher. Sem elas, a mulher há muito teria absorvido toda a criação em si. Não haveria cultura, sistema, piramidização de uma hierarquia sobre outra. O culto da terra deve perder para o culto do céu, se a mente quiser livrar-se da matéria. Ironicamente, quanto mais a mulher moderna pensa com clareza apolínea, mais participa da negação histórica de seu sexo. A igualdade política para as mulheres, apesar de desejável e necessaria, não vai remediar a disjunção radical entre os sexos que começa e termina no corpo. Os sexos sempre serão abalados por violentos choques de atração e repulsão.

A androginia, que algumas feministas defendem como um esquema pacifista para a utopia sexual, pertence mais à vida contemplativa que à ativa. É a antiga prerrogativa de sacerdotes, xamãs e artistas. As feministas politizaram-na como uma arma contra o princípio masculino. Redefinida, agora significa que os homens devem ser como as mulheres, e as mulheres podem ser como quiserem. A androginia é uma anulação da concentração e projeção masculinas. As receitas para o futuro, de acadêmicos e escritores burgueses, trazem sua própria tendenciosidade. A reforma do departamento de inglês de uma universidade nada significa na oficina mecânica da esquina. A concentração e projeção masculinas são visíveis por toda parte na agressiva energia das ruas. Felizmente, os homossexuais masculinos de todas as classes sociais têm preservado o culto do masculino, que portanto jamais perderá sua legitimidade estética. Os grandes picos da cultura ocidental foram acompanhados por uma alta incidência de homossexualismo masculino - na Atenas clássica, na Florença e na Londres do Renascimento. A concentração e projeção masculinas realçam a si mesmas, levando a supremos feitos de conceitualização apolínea.

Se a fisiologia sexual fornece o modelo para nossa experiência do mundo, qual é a metáfora básica da mulher? É o mistério, o oculto. Karen Horney fala da impossibilidade de a menina ver o próprio órgão genital, e da capacidade de o menino de ver os seus, como a origem da "maior subjetividade da mulher, em comparação com a maior objetividade do homem".5 Reformulando isso com minha ênfase diferente: a ilusória certeza masculina de que a objetividade é possível baseia-se na visibilidade de seus órgãos genitais. Segundo, essa certeza é um desvio defensivo da invisibilidade rsibilidade do útero, causadora de ansiedade. As mulheres tendem a ser mais realistas e menos obsessivas por causa de sua tolerância com a ambigüidade, que aprendem com a incapacidade de aprender sobre os próprios corpos. As mulheres aceitam a limitação do conhecimento como sua condição natural, uma grande verdade humana que um homem talvez leve uma vida para alcançar.

O insuportável mistério do corpo feminino aplica-se a todos os aspectos das relações dos homens com as mulheres. Que aparência terá aí dentro? Ela tem orgasmo? É mesmo meu filho? Quem foi de fato meu pai? O mistério envolve a sexualidade da mulher. Esse mistério é o principal motivo para o aprisionamento que o homem lhe impôs. Só confinando a esposa num harém trancado, guardado por eunucos, ele podia ter certeza de que o filho dela era dele também. A visibilidade genital do homem é uma das origens de seu desejo científico de teste externo, ratificação, prova. Por esse método, espera solucionar a derradeira história policial, seu nascimento ctônico. A mulher é velada. O despedaçamento violento desse véu talvez seja um dos motivos dos estupros por gangues e assassinatos com estupros, particularmente as eviscerações ritualísticas à la Jack, o Estripador. A escolha do útero da vítima pelo Estripador tem um paralelo exato no ritual de algumas tribos selvagens da África do Sul. Os crimes sexuais são sempre masculinos, nunca femininos, porque tais crimes são ataques conceitualizadores à inatingível onipotência da mulher e da natureza. O corpo de toda mulher contém uma célula de noite arcaica, onde todo conhecimento deve parar. Esse é o profundo significado por trás do strip-tease, uma dança sagrada de origens pagãs, que, como a prostituição, o cristianismo jamais conseguiu liquidar. As danças eróticas de machos não são comparáveis, pois uma mulher nua leva para fora do palco uma ocultação final, aquela escuridão ctônica da qual viemos.

O corpo da mulher é um lugar secreto, sagrado. É um temenos, ou recinto ritual, uma palavra grega que adoto para a discussão da arte. No espaço confinado do corpo da mulher, a natureza atua em seu estado mais negro e mecânico. Toda mulher é uma sacerdotisa que guarda o temenos de mistérios daimônicos. A virgindade é categoricamente diferente para os sexos. Um menino que se torna homem busca experiência. O pênis é como o olho ou a mão, uma extensão do ego que se projeta para fora. Mas a menina é um vaso lacrado, que tem de ser arrombado pela força. O corpo feminino é o protótipo de todos os espaços sagrados, do santuário na caverna ao templo e à igreja. O útero é o velado sancta sanctorum um grande problema, como veremos, para polemistas sexuais como William Blake, que buscam abolir a culpa e o segredo do sexo. O tabu sobre o corpo da mulher é o tabu que sempre paira sobre o lugar da magia. A mulher é literamente o oculto, que significa "o escondido". Esses sentidos misteriosos não podem ser mudados, só suprimidos, até voltarem a irromper na consciência cultural. A igualdade política só dara certo em termos políticos. Nada pode contra o arquétipo. Matem a imaginação, lobotomizem o cérebro, castrem e operem: aí os sexos serão os mesmos. Até então, temos de viver e sonhar na daimônica turbulência da natureza.

Tudo que é sagrado e inviolável provoca profanação e violação. Todo crime pode ser cometido, será. O estupro é uma forma de agressão natural que só pode ser controlada pelo contrato social. A mais ingênua formulação do feminismo moderno é sua afirmação de que o estupro é um crime de violência mas não de sexo, que é apenas poder mascarado de sexo. Mas sexo é poder, e todo poder é inerentemente agressivo. O estupro é o poder masculino combatendo o poder feminino. Não deve ser mais desculpado que o homicídio ou qualquer outro ataque aos direitos civis de outrem. A sociedade é a proteção da mulher contra o estupro, e não, como afirmam absurdamente algumas feministas, a causa do estupro. O estupro é a expressão sexual da vontade de poder, que a natureza planta em todos nós, e que a civilização surgiu para conter. Por conaguinte, o estuprador é um homem com pouca socialização, e não com socialização demais. Há uma evidência mundial esmagadora de que, sempre que os controles sociais são enfraquecidos, como nas guerras ou na anarquia, até homens civilizados comportam-se de modos incivilizados, entre os quais está a barbaridade do estupro.

As metáforas latentes do corpo asseguram a sobrevivência do estupro, que é apenas um desenvolvimento em grau de intensidade dos impulsos básicos do sexo. A perda da virgindade de uma garota é sempre, em algum sentido, uma violação de santidade, uma invasão de sua integridade e identidade. Defloramento é destruição. Mas a natureza cria por meio da violência e da destruição. A violência mais comum do mundo é o parto, com sua dor e sangueira apavorantes. A natureza dá aos homens infusões de hormônios de dominação, a fim de lançá-los contra o paralisante mistério da mulher, de quem eles, de outro modo, se esquivariam. O poder dela como senhora do parto já é demasiado extremo. Luxúria e agressão se fundem nos hormônios masculinos. Quem duvida disso jamais passou muito tempo com cavalos. Os garanhões são tão perigosos que têm de ser enjaulados em baias com barras; depois de castrados, ficam tão dóceis que servem de montaria para crianças. A disparidade hormonal nos seres humanos não é tão brutal, mas é mais do que agrada aos rousseauístas pensar. Quanto mais testosterona, mais elevada a libido. Quanto mais dominante o homem, mais freqüentes suas contribuições para o fundo comum genético. Mesmo em nível microscópico, a fertilidade masculina está em função não apenas do número de espermatozóides, mas de sua motilidade, isto é, de seu movimento incansável, que aumenta as possibilidades de concepção. Os espermatozóides são tropas de assalto em miniatura, e o óvulo uma cidadela que deve ser invadida. Os espermatozóides fracos ou passivos simplesmente ficam ali parados, como patos mortos. A natureza premia a energia e a agressão.

Profanação e violação fazem parte da perversidade do sexo, que jamais se conformará com teorias liberais de benevolência. Todo modelo de comportamento sexual moral ou politicamente correto será subvertido pela lei daimônica da natureza. A toda hora, de todo dia, algum horror está sendo praticado em alguma parte. O feminismo, argumentando a partir da opinião mais branda da mulher, ignora por completo a sede de sangue no estupro, o prazer da violação e da destruição. Uma estética e uma erótica da profanação - o mal pelo mal, o aguçamento dos sentidos pela crueldade e a tortura - foram documentadas por Sade, Baudelaire e Huysmans. As mulheres podem ser menos inclinadas a tais fantasias, porque lhes falta fisicamente o equipamento para a violência sexual. Elas não conhecem a tentação de invadir à força o santuário de outro corpo.

Nosso conhecimento dessas fantasias é ampliado pela pornografia, motivo pelo qual se deve tolerá-la, embora se possa restringir razoavelmente sua exibição pública. A imaginação não pode e não deve ser policiada. A pornografia mostra-nos o coração da natureza daimônica, aquelas forças eternas em ação por baixo e além da convenção social. Não se pode separar a pornografia da arte; as duas interpenetram-se, muito mais do que tem admitido a crítica humanista. Geoffrey Hartman diz com razão: "A grande arte é sempre ladeada por suas irmãs escuras, a blasfêmia e a pornografia".6 O próprio Hamlet, obra fundamental do Ocidente, esta repleto de lascívia. Os criminosos em toda a história, de Nero e Calígula a Gilles de Rais e aos comandantes nazistas, jamais precisaram de pornografia para estimular sua refinada e horrenda inventividade. Para isso basta a diabólica mente humana.


Felizes as épocas em que o casamento e a religião são fortes. O sistema e a ordem nos protegem do sexo e da natureza. Infelizmente, vivemos numa época em que o caos do sexo se escanearou. G. Wilson Knight observa: "O cristianismo surgiu originalrnente como um derrubador de tabus, em nome de uma humanidade sagrada; mas a Igreja a que deu origem ainda não conseguiu cristianizar a magia pagã do sexo".7 O erro mais gritante da historiografia tem sido a afirmação de que o judeu-cristianismo derrotou o paganismo. O paganismo sobreviveu nas mil formas de sexo, arte, e agora nos modernos meios de comunicação de massa. O cristianismo fez um ajuste atrás do outro, absorvendo engenhosamente a oposição (como durante o Renascimento italiano) e diluindo seu dogma para acompanhar a mudança dos tempos. Mas chegou-se a um ponto crítico. Com o renascimento dos deuses nas idolatrias de massa da cultura popular, com a erupção de sexo e violência em todos os cantos dos ubíquos meios de comunicação, o judeu-cristianismo enfrenta seu mais sério desafio desde o confronto da Europa com o islamismo na Idade Média. O paganismo latente da cultura ocidental ressurgiu com toda a sua daimônica vitalidade.

O paganismo jamais foi a desenfreada licenciosidade sexual pintada pelos missionários do jovem e aguerrido cristianismo. Apontar como típicas do paganismo as orgias dos entediados aristocratas romanos seria tão injusto como apontar como típicos do cristianismo os pecados de padres renegados ou as farras do papa Alexandre VI no Vaticano. A verdadeira orgia era uma cerimônia dos cultos maternos crônicos, em que havia tanto sexo como derramamento de sangue. O paganismo reconhecia, cultuava e temia o daimonismo da natureza, e limitava a expressão sexual com fórmulas rituais. O cristianismo foi um desenvolvimento da religião de mistério dionisíaca, que paradoxalmente tentava eliminar a natureza em favor de um outro mundo transcendental. O único contato com a natureza que o cristianismo permitia a seus seguidores era o sexo santificado pelo casamento. A natureza ctônica, encarnada em grandes figuras de deusas, era a mais formidável adversária do cristianismo. Esta religião funciona melhor quando instituições reverenciadas, como o monasticismo ou o casamento universal, canalizam a energia sexual em direções positivas. A civilização ocidental beneficiou-se enormemente da sublimação que o cristianismo impôs ao sexo. O cristianismo funciona menos quando o sexo é constantemente estimulado de outros lados, como acontece agora. Nenhuma religião transcendental pode competir com a espetacular proximidade e concretude dos carnais meios de comunicação. Nossos olhos e ouvidos são afogados numa torrente sensual.

A identidade ritual pagã de sexo e violência é a principal contenção dos meios de comunicação ao complacente rousseauísmo dos humanistas modernos. Os meios de comunicação comerciais, em resposta direta à preferência popular, contornam os censores liberais que desfrutaram tão longo controle sobre a cultura do livro. No cinema, na música popular e nos comerciais, vemos todos os mitos daimônicos e os estereótipos sexuais do paganismo, que os movimentos de reforma, do cristianismo ao feminismo, jamais puderam erradicar. Os sexos vivem eternamente em guerra. O sexo masculino tem um elemento de ataque, de busca e destruição, em que sempre haverá um potencial de estupro. O sexo feminino tem um elemento de captura, uma manipulação subliminar que leva à infantilização física e emocional do homem. Freud observa, a propósito de sua teoria da cena primal, que a criança, ao escutar os pais fazendo sexo, pensa que o homem está ferindo a mulher, e que os gritos de prazer da mulher são gritos de dor. A maioria dos homens simplesmente grunhe, na melhor das hipóteses. Mas os estranhos gritos sexuais da mulher vêm diretamente do ctônio. É a bacante que vai estraçalhar sua vítima. O sexo é um misterioso momento de ritual e magia, em que ouvimos o bárbaro uivo de triunfo da vontade da mulher. Uma dominação dissolve-se noutra. A dominada torna-se dominadora.

Toda mulher menstruada ou grávida é uma pagã e primitiva lançada de volta às distantes praias oceânicas das quais jamais evoluímos inteiramente. Nas ruas de toda cidade, prostitutas, a mais velha profissão do mundo, destacam-se como um repúdio à moralidade sexual. São a face daimônica da natureza, iniciadas dos mistérios pagãos. A prostituição não é só uma indústria de serviço, enxugando o excesso de demanda masculina, que sempre supera a oferta de mulheres. A prostituição testemunha o poder amoral da luta do sexo, que a religião jamais pôde deter. As prostitutas, os pornógrafos e seus clientes são saqueadores na floresta da noite arcaica.

Que a natureza atua diferentemente sobre os sexos, está provado pelo caso do homossexualismo feminino e masculino moderno, ilustrando como os sexos funcionam separadamente fora da convenção social. Resultado, segundo estatísticas de freqüência sexual: satiríase masculina e recolhimento feminino. O homossexual masculino faz sexo com mais freqüência que seu correspondente heterossexual; a homossexual feminina menos que a sua, uma polarização radical dos sexos numa única série de inconformismo sexual partilhado. A agressão e a luxúria masculinas são os fatores energizantes da cultura. São os instrumentos de sobrevivência dos homens na vastidão da natureza fêmea.

O antigo "dois pesos, duas medidas" deu aos homens uma liberdade sexual negada as mulheres. As feministas marxistas reduzem o histórico culto da virgindade da mulher ao valor dela como propriedade, seu valor no mercado masculino do casamento. Eu diria ao contrário que havia e há uma base biológica para esse duplo padrão. As primeiras informações médicas sobre a doença que mata homossexuais masculinos indicavam que os homens que corriam mais riscos eram aqueles que haviam tido mil parceiros durante a vida. Incredulidade. Quem seriam tais pessoas? Ora, veio-se a saber, todo mundo que a gente conhecia. Homens sérios, bondosos, educados, não vagabundos ou marginais. Que abismo divide os sexos! Abandonemos o fingimento da igualdade sexual e admitamos a terrível dualidade dos sexos.

O sexo masculino é romance de busca, exploração e especulação. A promiscuidade dos homens pode baratear o amor, mas aguça o pensamento. Promiscuidade em mulher é doença, um vazamento de identidade. A mulher promíscua contamina-se a si mesma e é incapaz de idéias claras. Rompeu a integridade ritual de seu corpo. É do maior interesse da natureza estimular o macho dominante a disseminar indiscriminadamente sua semente. Mas a natureza também lucra com a pureza da mulher. Mesmo na mulher liberada ou lésbica, há um freio biológico sussurrando: mantenha limpo o canal natal. Ao preservar-se judiciosamente, a mulher protege um feto invisível. Talvez seja esse o motivo do arquetípico horror (mais do que medo Asocializado) que muitas mulheres, de outro modo ousadas, têm de aranhas e outros insetos rastejantes ligeiros. A mulher resguarda-se porque o corpo feminino é um reservatório, um trecho virgem de água parada, empoçada, onde o feto chega a termo. A caça do homem e a fuga da mulher não são apenas um jogo social. O padrão duplo talvez seja uma das leis orgânicas da natureza. romance de busca do sexo masculino é uma guerra entre identidade e aniquilamento. A ereção é uma esperança de objetividade, de poder para atuar como agente livre. Mas no auge do sucesso masculino, a mulher está puxando o homem de volta ao seu seio, bebendo e estancando a sua energia. Freud diz: "O homem teme que sua força lhe seja tirada pela mulher, teme contaminar-se com a feminilidade dela e depois mostrar-se um_fracote".8 A masculinidade de combater o efeminamento dia a dia. A mulher e a natureza estão sempre prontas para reduzir o homem a menino e bebê.

As operações do sexo são convulsivas, do intercurso à menstruação e ao parto: tensão e distensão, espasmo, contração, expulsão, alívio. O corpo é retorcido em inchação e abandono. Sexo não é o princípio do prazer, mas a servidão dionisíaca do prazer-dor. Tanta coisa é uma questão de superar resistência, no corpo ou no amado, que o estupro será sempre um perigo presente. O sexo do homem é compulsão-repetição: seja o que for que um homem escreva no comentário de suas projeções falicas, tem de ser sempre reescrito. O homem sexual é o mágico serrando a dama pela metade, mas a cabeça e a cauda da serpente sempre vivem e tornam a juntar-se. A projeção é uma maldição masculina: precisar sempre de alguma coisa ou alguém para tornar-se completo. Essa das origens da arte e o segredo de sua dominação histórica pelos homens. O artista é o homem que mais perto chegou de imitar a soberba auto-suficiência da mulher. Mas ele precisa de sua arte, sua projeção. O artista bloqueado, como Da Vinci, sofre a tortura dos danados. A pintura mais famosa do mundo, a Mona Lisa, registra o auto-satisfeito isolamento da mulher, seu ambíguo sorriso de gozação da vaidade e desespero de seus muitos filhos.

Tudo o que é grande no Ocidente veio da disputa com a natureza. O Ocidente, não o Oriente, testemunhou a assustadora brutalidade do processo natural, o insulto ao espírito no pesado e cego rolar e escorrer da matéria. Na perda do ego, encontrariamos não o amor nem Deus, mas a sordidez primeva. Essa revelação coube historicamente ao homem ocidental, que é puxado de volta à mãe oceânica por ritmos de marés. Ê a seu ressentimento desse refluxo daimônico que devemos as grandes construções de nossa cultura. O apolinismo, frio e absoluto, é a sublime recusa do Ocidente. O apolíneo e uma linha masculina traçada contra a desumanizante magnitude da natureza feminina.

Tudo se derrete na natureza. Julgamos ver objetos, mas nossos olhos são lentos e parciais. A natureza desabrocha e definha em longa e resfolegante respiração, subindo e descendo em movimentos de onda oceânica. Uma mente que se abrisse inteiramente para a natureza, sem preconceito sentimental, ficaria farta do grosseiro materialismo da natureza, sua incansável superfluidade. Uma macieira carregadade de frutos: que coisa mais pacífica, mais colorida. Mas ê só afastar do olhar o o filtro do humanismo e tornar a olhar. Eis a natureza espumando e borbulhando, as loucas bolhas espermáticas transbordando e estourando naquela ronda inumana de desperdício, podridão e carnagem. Das compactadas células brilhantes de ova de peixe aos esporos macios que as vagens verdes ao explodirem despejam no ar, a natureza é um ninho de vespas infectado de agressão e matança. Essa é a magia negra crônica que nos contamina como seres sexuais; essa a identidade daimônica que o cristianismo tão inadequadamente define como pecado original e acha que pode lavar de nós. A mulher procriadora é o mais incômodo obstáculo à reivindicação de catolicidade do cristianismo, testemunhado por suas esperançosas doutrinas de Imaculada Concepção e Parto Virgem. A procriatividade da natureza ctônica é um obstáculo a toda a metafísica ocidental e a cada homem que busca identidade contra a mãe. A natureza ê um fervilhante excesso de ser.

A arma mais eficaz contra o fluxo da natureza é a arte. Religião, ritual e arte começaram como uma coisa só, e em toda arte ainda está presente um elemento religioso ou metafísico. A arte, por mais minimalista que seja, jamais é simples projeto. É sempre um reordenamento ritualístico da realidade. O empreendimento artístico, numa era coletiva estável ou numa era individualista instável, é inspirado pela ansiedade. Todo tema localizado e cultuado pela arte é ameaçado por seu oposto. A arte é um incluir para excluir. É um agrilhoamento da perpétua máquina de movimento que é a natureza. O primeiro artista foi um sacerdote tribal lançando um sortilégio, fixando a daimônica energia da natureza num momento de perpétua imobilidade. A fixação está no âmago da arte, fixação como stasis e como obsessão. O pintor moderno que apenas traça uma linha sobre uma página ainda tenta domar um aspecto incontrolável da realidade. A arte é fascinante. Prega a platéia no assento, detêm os pés diante de um quadro, fixa o livro à mão. A contemplação é um ato de magia.

Arte é ordem. Mas a ordem não é necessariamente justa, bondosa ou bela. Pode ser arbitrária, dura e cruel. A arte nada tem a ver com moralidade. Pode haver temas morais, mas são incidentais, apenas fixando uma obra de arte num determinado tempo e lugar. Antes do Iluminismo, a arte religiosa era hierática e cerimonial. Depois do Iluminismo, a arte teve de criar seu próprio mundo, em que novos rituais de formalismo artístico substituíram os universais religiosos. A literatura neoclassicista inglesa do século XVIII demonstra que o que atrai o artista é mais a ordem na moralidade do que a moralidade na arte. Só os liberais utópicos se surpreenderam com o fato de os nazistas serem connoisseurs de arte. Sobretudo nos tempos modernos, quando a grande arte foi empurrada para a periferia da cultura, é evidente que a arte é agressiva e compulsiva. O artista faz arte não para salvar a humanidade, mas para salvar-se a si mesmo. Toda observação benevolente de um artista é uma nuvem de fumaça para encobrir seus rastros, a trilha sangrenta de seu ataque à realidade e a outros.

Arte é temenos, um lugar sagrado. Ê ritualmente limpa, um chão varrido, a eira que foi o primeiro palco de teatro. O que entra nesse espaço se transforma. Do bisonte da pintura rupestre aos astros de cinema de Hollywood, os seres representados entram numa outra vida cúltica, da qual talvez jamais tornem a sair. Estão enfeitiçados. A arte é sacriñcial, voltando sua agressão inerente tanto contra o artista quanto contra a representação. Nietzsche diz: "Quase tudo o que chamamos de 'alta cultura' baseia-se na espiritualização da crueldade"9 Os intermináveis assassinatos e tragédias da literatura estão lá para o prazer da contemplação, não como lição moral. Seu status de ficção, transferido para um recinto sagrado, intensifica nosso prazer, garantindo que a contemplação não pode transformar-se em ação. Nenhuma investida de um espectador compadecido pode evitar a fria inevitabilidade daquela cerimônia hierática, reprisada ritualmente pelo tempo afora. O sangue que se derrama será sempre derramado. O ritual na igreja ou no teatro é fixação amoral, afastando a ansiedade pela formalização e paralisação da emoção. O ritual da arte é a lei cruel da dor transformada em prazer.

A arte faz coisas. Eu já disse que não há objetivo na natureza, só a terrível erosão da força natural, salpicando, dilapidando, triturando, reduzindo toda matéria a fluido, à grossa sopa primal da qual brotam novas formas, arquejantes por vida. Dioniso era identificado com líquidos - sangue, seiva, leite, vinho. O Dionisíaco é a fluidez crônica da natureza. Apolo, por outro lado, dá forma e contorno, distinguindo um ser de outro. Todos os artefatos são apolíneos. A fusão e a união são dionisíacas; a separação a a individuação, apolíneas. Todo rapaz que deixa a mãe para tornar-se homem está voltando o apolíneo contra o dionisíaco. Todo artista compelido para a arte, que precisa de palavras ou imagens como outros necessitam respirar, está usando o apolíneo para derrotar a natureza ctônica. No sexo, os homens têm de mediar entre Apolo e Dioniso. Sexualmente, as mulheres têm de permanecer oblíquas, opacas, aceitando o prazer sem tumulto ou conflito. A mulher é um temenos de seus próprios mistérios obscuros. Genitalmente, o homem possui uma coisinha que tem de viver mergulhando em dissolução dionisíaca - um negócio arriscado! Fazer coisas, preservar coisas é fundamental para a experiência masculina. O homem é fetichista. Sem seu fetiche, a mulher tornara a engoli-lo.

Daí o domínio da arte e da ciência pelo homem. O foco, a objetividade, a concentração e projeção do home, que identifiquei com o ato de urinar e ejacular, são suas ferramentas de sobrevivência sexual, mas nunca lhe deram a vitória final. A ansiedade na experiência sexual continua tão forte como sempre. homem tenta corrigir isso pelo culto da beleza feminina. Está eroticarnente fixado nas "belas formas" da mulher, nas esponjosas camadas de gordura maternal dos seios, quadris e nádegas, que são, ironicamente, as partes mais aguadas e menos estáveis de sua anatomia. O corpo ondulado da mulher reflete o mar encapelado da natureza crônica. Concentrando-se nas belas formas, fazendo da mulher um objeto sexual, o homem tem lutado para fixar e estabilizar o pavoroso fluxo da natureza. Objetificação ê conceitualização, a mais alta faculdade humana. Transformar pessoas em objetos é uma das especialidades de nossa espécie. Jamais desaparecerá, pois está entrelaçada com o impulso artístico e pode ser-lhe idêntico. O objeto sexual é forma ritual imposta à natureza. É um totem de nossa perversa imaginação.

A produção apolínea de coisas é a linha principal da civilização ocidental, estendendo-se do antigo Egito ao presente. Toda tentativa de reprimir esse aspecto de nossa cultura foi no fim derrotada. Primeiro o judaísmo, depois o cristianismo voltaram-se contra a fabricação de ídolos pagãos. Mas o cristianismo, de impacto maior que o judaísmo, tornou-se a religião mais pejada de arte, mais dominada pela arte, do mundo. A imaginação sempre remedia as falhas da religião. O objeto mais duro que resultou da fabricação apolínea é a personalidade ocidental, o ego fascinante, lutador, separatista, que entrou na literatura com a Ilíada, mas, como pretendo mostrar, apareceu primeiro na arte egípcia do Antigo Império.

O cristianismo, varrendo os encantos seculares do paganismo, tentou tornar a espiritualidade básica. Mas, como seita combativa, terminou reforçando a estrutura de ego absolutista do Ocidente. O herói militante da Igreja medieval, o cavaleiro de armadura reluzente, é a coisa apolínea mais perfeita na história do mundo. Os livros de arte precisam ser reescritos: há uma linha direta que vem da escultura grega e romana, passa pela armadura medieval, e chega à ressurreição do classicismo no Renascimento. Armas e armaduras não são artesanato, mas arte. Trazem o peso simbólico da personalidade ocidental. A armadura é a continuidade pagã no cristianismo medieval. Depois que o Renascimento possibilitou a criação da arte sensual e idólatra do classicismo, a linha pagã continuou com força impudente até hoje. A idéia de que a tradição ocidental desmoronou após a Primeira Guerra Mundial é uma das pequenas birras míopes do liberalismo. Sustentarei que a alta cultura se tornou obsoleta pelo niilismo neurótico do modernismo, e que a cultura popular é a grande herdeira do passado ocidental. O cinema é o supremo gênero apolíneo, coisa criada e' criador de coisas, uma máquina dos deuses.

O homem, conceitualizador e projetor sexual, tem dominado a arte porque essa é sua resposta apolínea em direção à mulher, e para longe dela. Um objeto sexual é alguma coisa a visar. O olho é a seta de Apolo a seguir o arco de transcendência que vi no ato de urinar e ejacular do homem. O olho ocidental é um projétil lançado para além, para aquele deserto da condição masculina. Não por coincidência a Europa foi a primeira a fazer armas de fogo com pólvora, que a China inventara séculos antes, mas para a qual pouca utilidade encontrara. A agressão e projeção fálicas são intrínsecas à conceitualização ocidental. Seta, olho, canhão, cinema: o ígneo facho de luz do projetor de cinema é o nosso moderno caminho de transcendência apolínea. O cinema é a culminação do obsessivo impulso masculino, mecanicista, na cultura ocidental. É um atirador apolíneo, demonstrando a relação entre a agressão e a arte. Todo enquadramento de imagem é uma limitação ritual, um recinto fechado. A tela de cinema retangular segue visivelmente o modelo do quadro emoldurado pósrenascentista. Mas toda conceitualização é um enquadramento.

A história das roupas pertence à história da arte, mas com demasiada freqüência é encarada como um adjunto jornalístico feminino à erudição. Não há nada de trivial na moda. Os padrões de beleza são conceitualizações projetadas por cada cultura. Dizem-nos tudo. As mulheres têm sido as mais vitimadas pela roda da moda em eterno movimento, sujeitando seus pés ou colos a comandos fantasmas. Mas a moda não é apenas mais uma opressão política a ser acrescentada à litania feminista. Os padrões de beleza, criados pelos homens, mas em geral consentidos pelas mulheres, limitam ritualmente a arquetípica fascinação sexual das mulheres. A moda é uma externalização da invisibilidade daimônica da mulher, seu mistério genital. Põe diante do olho apolíneo do homem o que esse olho nunca pode ver. A beleza é um congelamento de imagem apolíneo pára e condensa o fluxo e a indeterminação da natureza. Permite ao homem agir realçando a desejabilidade do que ele teme.

O poder do olho na cultura ocidental não foi plenamente apreciado ou analisado. O asiático desvaloriza os olhos e transfere valor para o terceiro olho místico, assinalado pelo ponto vermelho hindu na testa. A personalidade é inautêntica no Oriente, que identifica o ego com o grupo. A meditação oriental rejeita o tempo histórico. Temos uma tradição religiosa paralela: os axiomas paradoxais dos místicos e poetas orientais e ocidentais muitas vezes são indistinguíveis. O budismo e o cristianismo concordam em ver o mundo material como samsara, o véu da ilusão. Mas o Ocidente tem outra tradição, a pagã, que culmina no cinema. O século XX não é a Era da Ansiedade, mas a Era de Hollywood. O culto pagão da personalidade redespertou e domina toda arte, todo pensamento. É moralmente vazio, mas ritualmente profundo. Nós o adoramos pelo poder do olho ocidental. A tela de cinema e a de televisão são seus recintos sagrados.

A cultura ocidental tem um olho errante. O sexo masculino é caça e varredura: os rapazes penduram-se berrando de carros a buzinar, agindo como basbaques com as moças que passam; homens que almoçam nas obras em construção recorrem a toda a gama primitiva de assobios e estalos animais. Por toda parte, a mulher bonita é examinada dos pés à cabeça e importunada. E o símbolo último do desejo humano. O feminino é aquilo-que-se-busca; recua além do nosso alcance. Daí haver sempre um elemento feminino no rapaz bonito do homossexualismo masculino. O feminino é o sempre fugidio, um reflexo prateado no horizonte. Seguimos essa imagem com olhos anelantes: talvez esta, talvez esta vez. A busca do sexo pode ocultar um sonho de libertar-se do sexo. Sexo, conhecimento e poder estão profundamente embaralhados; não podemos ter um sem os outros. O islamismo é sábio ao envolver de negro as mulheres, pois o olho é a avenida de eros. As personalidades duras e definidas da cultura ocidental sofrem de inflamação ocular. São tão numerosas que jamais foram catalogadas, a não ser em nossa magnífica arte do retrato. As personas sexuais ocidentais são núcleos de poder, mas fizeram do erotismo um tormento. Desse tormento veio nossa grandiosa tradição literária e artística. Infelizmente, não há como separar o basbaque que assobia na rua do arrebatado visionário diante de seu cavalete. Ao aceitar os dons da cultura, as mulheres talvez tenham de aceitar o bicho dentro da maçã.

O judeu-cristianismo não conseguiu controlar o olho ocidental. Nossos processos mentais formaram-se na Grécia e foram herdados por Roma, cuja língua continua a ser a voz oficial da Igreja católica. A pesquisa e a lógica intelectuais são pagãs. Toda pesquisa é precedida por um olho errante; e assim que o olho começa a vagar, não pode ser moralmente controlado. O judaísmo, devido ao seu medo do olho, impôs um tabu à representação visual. O cristianismo fez o mesmo, até derivar para o pictorialismo, a fim de atrair as massas pagãs. O protestantismo começou como iconoclasmo, a destruição das imagens da corrupta Igreja católica. O estilo protestante estrito é uma igreja branca com janelas simples. Afortunadamente, o catolicismo italiano mantém o mais vivido pictorialismo, legado de um passado pagão que jamais se perdeu.

O paganismo depende do olhar. Baseia-se no exibicionismo cultural, no qual se juntam o sexo e o sadomasoquismo. Os antigos mistérios ctônicos jamais desapareceram das igrejas italianas. Círeos cadáveres de santos envidraçados. Pedaços de ossos de braços em relicários dourados. São Sebastião meio nu trespassado por flechas. Santa Luzia segurando os próprios olhos num prato. Sangue, tortura, êxtase e lágrimas. Esse sinistro sensacionalismo torna o catolicismo italiano a cosmologia emocionalmente mais complexa da história religiosa. A Itália acrescentou sexo e violência pagãos ao ascético credo palestino. E daí para Hollywood, a moderna Roma pagã: foram o sexo e violência pagãos que floresceram tão vividamente em nossos meios de comunicação de massa. A câmera libertou a imaginação daimônica ocidental. O cinema é exibição sexual, uma ostentação pagã. Trama e diálogo são uma bagagem obsoleta de palavras. O cinema, o gênero que mais exige do olhar, restaurou o exibicionismo cultural da Antigüidade pagã. O espetáculo é um culto pagão do olho.

Não existe essa coisa de "mera" imagem. A cultura ocidental ergue-se sobre relações perceptivas. Das altas projeções divinas do antigo culto do céu à maquinaria criadora de celebridades da promoção comercial americana, a identidade ocidental organizou-se em torno de carismáticas personas sexuais de poder hierárquico. Todo deus é um ídolo, literalmente uma "imagem" (idolum, em latim, do grego eidolon). Imagem é visibilidade implícita. O visual é muito subvalorizado na erudição moderna. A história da arte só alcançou uma fração da sofisticação conceitual da crítica literária. A literatura e a arte permanecem distintas. Embriagada de amor a si mesma, a crítica superestimou imensamente a importância da linguagem para a cultura ocidental. Não viu a eletrizante linguagem simbólica das imagens.

A guerra entre o judeu-cristianismo e o paganismo ainda está sendo travada nas últimas ideologias das universidades. Freud, como judeu, talvez tenha tendido em favor da palavra. Em minha opinião, a teoria freudiana enfatiza demais o caráter lingüístico do inconsciente, e menospreza o deslumbrante pictorialismo cinematográfico da vida dos sonhos. Além disso, as discussões dos franceses sobre as limitações racionalistas de sua própria cultura foram ilegitimamente transferidas para a Inglaterra e para os Estados Unidos, com resultados medíocres. A língua inglesa foi criada por poetas, um empreendimento de quinhentos anos de emoção e metáfora, o mais rico diálogo interior da literatura mundial. Os modelos retóricos franceses são demasiado estreitos para a tradição inglesa. A mais perniciosa das importações francesas é a idéia de que não há pessoa por trás de um texto. Haverá alguma coisa mais afetada, agressiva e inexoravelmente concreta do que um intelectual parisiense por trás de seu bombástico texto? O parisiense é um provinciano quando pretende falar para o universo. Por trás de todo livro há uma certa pessoa, com uma certa história. Personalidade é a realidade ocidental. É uma condensação visível do sexo e da psique fora do âmbito da palavra. Nós a conhecemos pela visão apolínea, o cinema pagão da percepção ocidental. Não tiremos do olho para dar ao ouvido.

A adoração da palavra tornou difícil para os eruditos o trato com a mudança cultural radical de nossa era de comunicação de massa. Os acadêmicos vivem travando uma batalha de retaguarda. A tradicional crítica de gêneros está moribunda. As humanidades têm de abandonar seus feudos insulares e começar a pensar em termos de imaginação, um poder que atravessa os gêneros e une a grande arte e a arte popular, o nobre e o mendigo. Não há declínio nem tragédia no triunfo dos meios de comunicação de massa, só uma mudança da palavra para a imagem - em outras palavras, um retorno ao pictorialismo pagão pré-Gutenberg, pré-protestante, da cultura ocidental.

Que a cultura popular reclama o que a alta cultura veta, fica claro no caso da pornografia. A pornografia é puro imagismo pagão. Do mesmo modo como um poema é expressão verbal ritualmente limitada, a pornografia é expressão visual ritualmente limitada do daimonismo do sexo e da natureza. Cada tomada, cada ângulo da pornografia, por mais tolos, pervertidos ou doentios que sejam, é mais uma tentativa de tudo captar da enormidade da natureza crônica. Pornografia é arte? Sim. Arte é contemplação e conceitualização, o exibicionismo ritual dos mistérios primitivos. A arte extrai ordem da brutalidade ciclônica da natureza. A arte, como eu disse, está cheia de crimes. A feiúra e a violência da pornografia refletem a feiúra e a violência da natureza.

A franqueza da pornografia criada pelo homem torna visível o que ê invisível, a internalidade crônica da mulher. Tenta lançar luz apolínea na escuridão da mulher, causadora de ansiedade. O contorcionismo vulgar da pornografia é o enredamento serpentino da natureza medusina. A pornografia é a imaginação em tensa ação teatral; suas violações são um protesto contra as violações de nossa liberdade pela natureza. A proibição da pornografia, corretamente buscada pelo judeu-cristianismo, seria uma vitória sobre o obstinado paganismo do Ocidente. Mas a pornografia não pode ser proibida, só lançada na clandestinidade, onde sua carga ilícita será realçada. O pictorialismo amoral da pornografia viverá eternamente como uma repulsa ao culto humanista do ato redentor. As palavras não podem salvar o fluxo cruel da natureza pagã.

O olho ocidental faz coisas, ídolos da objetificação apolínea. A pornografia incomoda muita gente bem-intencionada porque isola o elemento voyeurista presente em toda arte, especialmente no cinema. Todas as personas da arte são objetos sexuais. A reação emocional do espectador ou leitor é inseparável da reação erótica. Como disse, nossas vidas como seres físicos são um continuum dionisíaco de prazer-dor. A todo momento estamos mergulhados no sensório, mesmo durante o sono. Excitação emocional é excitação sensual; excitação sensual é excitação sexual. A idéia de que se pode separar emoção e sexo é uma ilusão cristã, uma das estratégias mais engenhosas, mas no fim ineficaz, na antiga campanha do cristianismo contra a natureza pagã. Agape, amor espiritual, pertence a eros, mas fugiu de casa.

Somos voyeurs nos perímetros da arte, e há uma sensualidade sadomasoquista em nossas reações a ela. A arte é um escândalo, literalmente um "obstáculo", a todo moralismo, seja na direita cristã ou na esquerda rousseauísta. Pornografia e arte são inseparáveis, porque há voyeurismo e voracidade em todas as nossas sensações como seres que vêem e sentem. A mais completa exploração dessas idéias é o épico renascentista The faerie queene [A rainha fada], de Edmund Spenser. Neste poema, que prefigura o cinema por suas radiosas projeções apolíneas, esta copiosamente documentada a latência voyeurística e sadomasoquista na arte e no sexo. A percepção ocidental é um teatro daimônico de surpresa ritual. Podemos não gostar do que vemos quando olhamos o negro espelho da arte.

Objeto sexual, obra de arte, personalidade: a experiência ocidental é celular e divisiva. Impõe um gráfico de espaços demarcados à continuidade e fluxo da natureza. Fizemos demarcações apolíneas que funcionam como domínios rituais contra a natureza; daí nossos complexos códigos criminais e nossa elaborada erótica de transgressão. A fraqueza nas criticas radicais ao sexo e à sociedade é que não reconhecem que o sexo precisa de cadeias rituais para controlar seu daimonismo, e, segundo, que as repressões da sociedade aumentam o prazer sexual. Não há nada menos erótico do que uma colônia de nudismo. O desejo intensifica-se com limitações rituais. Daí a máscara, o arnês e as correntes do sadomasoquismo.

As células ocidentais de santidade e criminalidade são um avanço cognitivo na história humana. Nossos mitos fundamentais são Fausto, que se tranca em seu gabinete para ler livros e decifrar o código da natureza, e Don Juan, que faz uma guerra de prazer e conta suas conquistas por número apolíneo. Os dois são egos celulares, sedutores e conhecedores criminosos, nos quais se fundem o sexo, o pensamento e a agressão. Essa célula separada da natureza é nosso cêrebro e olho. Nossas duras personalidades são projeções imagísticas do córtex superior apolíneo. As personas são idéias visíveis. Todas as expressões faciais e posturas teatrais, presentes nos animais primatas, são sombras passageiras de personas. Enquanto o decoro japonês limita as expressões faciais, a arte ocidental desde a era helenística registrou toda permutação de ironia, ansiedade, flerte e ameaça. A dureza de nossas personalidades produziu a vulnerabilidade do Ocidente à decadência. Tensão leva à fadiga e ao colapso, "últimas" fases de história, em que floresce o sadomasoquismo. Como vou mostrar, a decadência é uma doença do olho, uma intensificação sexual do voyeurismo artístico.

As coisas apolíneas do sexo e da arte ocidentais alcançam sua glorificação econômica no capitalismo. Nos últimos quinze anos, as teorias marxistas de literatura têm gozado de crescente voga. Ter consciência do contexto social da arte parece implicar automaticamente orientação marxista. Mas é possível uma teoria que seja ao mesmo tempo de vanguarda e capitalista. O marxismo foi uma das progênies de Rousseau no século XIX, energizada pela fé na perfectibilidade do homem. Sua crença em que as forças econômicas constituem a dinâmica básica da história é naturismo romântico disfarçado. Quer dizer, esboça um crescente movimento de onda no contexto material da vida humana, mas tenta negar o perverso daimonismo desse contexto. O marxismo é a mais sombria das formações de ansiedade contra o poder das mães crônicas. Sua influência na historiografia moderna tem sido excessiva. A teoria histórica do "grande homem" não era tão simplista quanto se diz; mal nos recuperamos de uma guerra mundial em que essa teoria se revelou perversamente verdadeira. Um homem pode mudar o curso da história, para o bem ou para o mal. O marxismo é uma fuga à magia da persona e à mística da hierarquia. Distorce o caráter da cultura ocidental, que se baseia no poder carismático da pessoa. O marxismo só pode funcionar em sociedades pré-industriais de populações homogêneas. Ê só elevar o padrão de vida, e o variegado motim de individualismo irromperá. A personalidade e a arte, que o marxismo teme e censura, ricocheteiam de toda tentativa de reprimi-las.

O capitalismo, ostentoso e cúpido, tem sido inerente à estética ocidental desde o antigo Egito. É o misticismo e o fascínio das coisas, que assumem uma personalidade própria. Como sistema econômico, está na linha darwiniana de Sade, não de Rousseau. A sobrevivência capitalista do mais capaz já está presente na Ilíada. As personas sexuais ocidentais chocam-se de dia e de noite. Os reluzentes guerreiros revestidos de bronze de Homero são as latas de sopa apolíneas que se amontoam nos iluminados templos de nossos supermercados e competem por atenção na televisão. O Ocidente objetifica pessoas e personaliza objetos. A pululante publicidade dos produtos capitalistas é uma correção apolínea da natureza. As marcas comerciais são células territoriais da identidade ocidental. Nossos reluzentes automóveis cromados, como nossos exércitos de caixas e latas de supermercado, são extrapolações da dura, impermeável personalidade ocidental.

Os produtos capitalistas são outra versão das obras de arte que inundam a cultura ocidental. A pintura emoldurada portátil surgiu no nascimento do comércio moderno, no início de Renascimento. Capitalismo e arte têm-se desafiado e alimentado mutuamente desde então. O capitalista e o artista são tipos paralelos: o artista é exatamente tão amoral e aquisitivo quanto o capitalista, e igualmente hostil aos competidores. O fato de, na era do príncipe mercador, as obras de arte serem mascateadas e vendidas como cachorro-quente, apóia meu argumento, mas não é fundamental para ele. A cultura ocidental é animada por um materialismo visionário. O formalismo apolíneo roubou da natureza para fazer um romance de coisas, duras, reluzentes, grosseiras e voluntariosas.

A rede de distribuição capitalista, uma complexa cadeia de fábrica, transporte, depósito e pontos-de-venda, é um dos maiores feitos masculinos na história da cultura. É um circuito apolíneo, com a rapidez do raio, de aliança masculina. Uma das irritantes reações automáticas do feminismo é seu desdém de bom-tom pela "sociedade patriarcal", a que jamais se atribui alguma coisa de bom. Mas foi a sociedade patriarcal que me libertou a mim como mulher. Foi o capitalismo que me proporcionou o lazer para me sentar a esta mesa e escrever este livro. Vamos parar de ser tacanhas em relação aos homens e reconhecer livremente os tesouros que a obsessividade deles despejou na cultura.

Podíamos fazer um catálogo épico das conquistas masculinas, das estradas pavimentadas, do encanamento das casas e das máquinas de lavar aos óculos, antibióticos e fraldas descartáveis. Desfrutamos de leite e carne frescos, sadios, e legumes e frutas tropicais em cidades cobertas de neve. Quando atravesso a ponte George Washington ou qualquer das grandes pontes dos Estados Unidos, penso: foram os homens que fizeram isso. A construção é uma sublime poesia masculina. Quando vejo um gigantesco guindaste passando numa carreta, paro com respeito e reverência, como se faria com uma procissão. Que poder de concepção, que grandiosidade: esses guindastes nos ligam ao antigo Egito, onde a arquitetura monumental foi imaginada e realizada pela primeira vez. Se se tivesse deixado a civilização nas mãos da mulher, ainda estaríamos morando em cabanas de palha. A mulher contemporânea que usa um capacete de operário simplesmente entra num sistema conceitual inventado pelos homens. O capitalismo é uma forma de arte, uma invenção apolínea para rivalizar com a natureza. É hipocrisia das feministas e dos intelectuais desfrutarem os prazeres e conveniências do capitalismo, fazendo ao mesmo tempo pouco dele. Até mesmo o Walden de Thoureau foi apenas uma experiência de dois anos. Todos os que nasceram no capitalismo incorreram em dívida com ele. Dai a César o que é de César.

A dialética pagã de apolíneo e dionisíaco era extensamente abrangente e precisa quanto a mente e a natureza. O amor cristão é tão carente da polaridade emocional dessa dialética que foi preciso inventar o Diabo, para concentrar o ódio e a hostilidade humanos. A psicologia cristianizada do rousseauísmo levou à tendência dos liberais ao mau humor ou à depressão diante das tensões políticas, guerras e atrocidades que contradizem diariamente suas suposições. Pode ser que, quanto mais sejamos sensibilizados pela leitura e a educação, mais tenhamos de reprimir os fatos da natureza ctônica. Mas a insuportável dicotomia feminista entre sexo e poder deve acabar. Assim como os ódios num julgamento de divórcio expõem a face negra por baixo da máscara do amor, também a verdade sobre a natureza se revela durante as crises. As vítimas de tufões e furacões falam instintivamente na "fúria da Mãe Natureza" - quantas vezes ouvimos essa expressão na televisão, enquanto a câmera acompanha sobreviventes desorientados que percorrem os destroços de casas e cidades. No inconsciente, todos sabem que Jeová jamais obteve controle dos selvagens elementos. Natureza ê Pandemônio, um Dia de Todos os Demônios.

Não há acidentes, só a natureza se impondo. Mesmo a bomba apenas libera energia que a natureza pôs ali. A guerra nuclear seria apenas uma fagulha na grandiosidade do espaço. Tampouco pode a radiação "alterar" a natureza: ela a absorverá completamente. Depois da bomba, a natureza pegará as cartas que derrubamos, embaralhará e recomeçará seu jogo. Está sempre jogando paciência consigo mesma.

O amor ocidental tem sido ambivalente desde o começo. Já com Safo (600 a.C.), ou mesmo antes na lenda épica de Helena de Tróia, a arte registra a força da atração e hostilidade nesse perverso fascínio que chamamos de amor. Há um magnetismo erótico no Ocidente, devido à dureza da personalidade ocidental: o erotismo é um campo de força elétrico entre máscaras. A busca moderna de auto-realização não levou à felicidade sexual, porque as afirmações de individualidade apenas liberam o caos amoral da libido. A liberdade é a mais superestimada das idéias modernas, originária da rebelião romântica contra a sociedade burguesa. Mas só em sociedade se pode ser um indivíduo. A natureza está à espera, nas portas da sociedade, para nos dissolver em seu seio ctônico. Fora com os estereótipos, proclama o feminismo. Mas os estereótipos são as estonteantes personas sexuais do Ocidente, os veículos do ataque da arte à natureza. No momento em que há imaginação, há mito. Podemos ter de aceitar uma divisão ética entre imaginação e realidade, tolerando na arte horrores, estupros e mutilações que não toleraríamos na sociedade. Pois a arte é nossa mensagem do além, dizendo o que a natureza prepara. Não o sexo, mas a crueldade, é a grande questão esquecida ou suprimida na agenda humanistica moderna. Devemos honrar o ctônio, mas não necessariamente nos curvar a ele. Em The rape of the lock [O rapto do cacho], Pope recomenda o bom humor como única solução para a guerra dos sexos. O mesmo se aplica ã nossa escravização pela natureza ctônica. Devemos aceitar nossa dor, mudar o que pudermos, e rir do resto. Mas vejamos a arte como ela é. Desde a mais remota Antigüidade, a arte ocidental tem sido um desfile de personas sexuais, emanações da mente ocidental absolutista. A arte ocidental é um cinema de sexo e sonhos. A arte é a forma que luta para despertar do pesadelo da natureza.