Richard Feynman no Brasil (1952) (2025)O trecho abaixo é uma seção do "Só pode ser brincadeira, Sr. Feynman!".
Links pra alguns parágrafos importantes:
Quanto à educação no Brasil, tive uma experiência muito interessante. Estava ensinando para um grupo de estudantes que seriam professores, já que no Brasil da época não havia muitas oportunidades de trabalho para pessoas com formação científica de alto nível. Esses alunos já tinham feito muitos cursos, e o meu seria seu curso mais avançado em eletricidade e magnetismo — equações de Maxwell e daí por diante. A universidade se distribuía por diversos edifícios pela cidade, e tal curso foi num prédio de frente para a baía. Descobri uma coisa muito estranha: os alunos respondiam imediatamente as perguntas que eu fazia. Mas, quando fazia de novo a pergunta — a mesma pergunta, sobre o mesmo assunto, até onde me lembro —, eles não sabiam responder! Por exemplo, certa vez eu estava falando sobre luz polarizada e distribuí entre eles algumas fitas de polaroide. A luz só atravessa o polaroide quando seu vetor elétrico vai num certo sentido, então expliquei que, observando se o polaroide está claro ou escuro, é possível descobrir como a luz está sendo polarizada. Pegávamos primeiro duas fitas de polaroide, que girávamos até que recebessem o máximo de luz. Assim se podia afirmar que as duas fitas estavam recebendo luz polarizada no mesmo sentido — o que passava por uma das fitas podia passar pela outra. Então, perguntei como seria possível descobrir o sentido absoluto da polarização dispondo de uma só fita de polaroide. Eles não tinham a menor ideia. Eu sabia que isso exigia um pouco de sagacidade, então lhes dei uma pista: — Olhem a luz refletida pela baía lá fora. Ninguém disse nada. Então perguntei: — Vocês já ouviram falar do ângulo de Brewster? — Sim, senhor! O ângulo de Brewster é o ângulo em que a luz refletida de um meio com um índice de refração fica completamente polarizada. — E de que forma a luz é polarizada quando refletida? — A luz é polarizada perpendicularmente ao plano de reflexão. Agora eu tive de pensar; eles sabiam aquilo de cor e salteado! Sabiam também que a tangente do ângulo é igual ao índice! — E então? — perguntei. Nada. Eles acabavam de dizer que a luz refletida de um meio com um índice, como a baía, era polarizada; tinham dito ainda de que forma era polarizada. — Olhem para a baía lá fora, através do polaroide. Agora virem o polaroide — falei. — Ah, está polarizada! — disseram eles. Depois de muito investigar, descobri que os alunos tinham memorizado tudo, mas não sabiam o que aquilo significava. Quando ouviam dizer “luz que é refletida de um meio com um índice”, não sabiam que isso significava um material como a água. Eles não sabiam que “o sentido da luz” é o sentido em que o sujeito vê alguma coisa quando está olhando para ela, e assim por diante. Tudo estava perfeitamente decorado, mas significado nenhum fora absorvido. Assim, se eu perguntasse “O que é ângulo de Brewster?”, estaria entrando no computador com a senha correta. Mas se dissesse “Olhem para a água”, nada acontecia — não havia resposta ao comando “Olhem para a água!” Depois assisti a uma aula na escola de engenharia. A aula foi mais ou menos assim: “Dois corpos… são considerados equivalentes… se torques iguais… gerarem aceleração igual. Dois corpos são considerados equivalentes se torques iguais gerarem aceleração igual.” Os alunos estavam lá sentados, escrevendo o ditado, e, quando o professor repetia a sentença, verificavam se tinham escrito tudo certo. E aí escreviam a próxima sentença e por aí vai. Eu era o único que sabia que o professor estava falando sobre corpos com o mesmo momento de inércia, e era difícil concluir isso. Eu não conseguia vislumbrar como eles iam aprender com aquele método, fosse qual fosse o conteúdo. Ali estava o professor, falando de momento de inércia, mas não havia discussão sobre como varia a dificuldade de abrir uma porta quando do outro lado dela se põe um peso mais perto ou mais longe das dobradiças — nada! Depois da aula, conversei com um dos alunos: — Vejo que vocês tomaram um monte de notas. O que vão fazer com elas? — Vamos estudá-las — disse ele. — Teremos prova. — Como vai ser essa prova? — Muito fácil. Posso afirmar agora mesmo qual vai ser uma das perguntas. — Olhou para o caderno e disse: — “Quando dois corpos são equivalentes?” E a resposta é: “Dois corpos são considerados equivalentes quando torques iguais geram aceleração igual.” Vê-se então que eles eram aprovados nos exames e “aprendiam” aquela coisa toda sem saber nada além do que tinham decorado. Fui ver então um exame para candidatos à escola de engenharia. Era um exame oral, e fui autorizado a observá-lo. Um dos candidatos era absolutamente fantástico: respondeu certinho a todas as perguntas! Os examinadores perguntaram o que era diamagnetismo, e ele respondeu com perfeição. Depois perguntaram: — Quando a luz chega a um ângulo depois de passar por uma lâmina de material de certa espessura e de índice N, o que acontece com ela? — Fica paralela a si mesma, senhor; deslocada. — E o quanto ela se desloca? — Não sei, senhor, mas posso arriscar um palpite. E arriscou seu palpite. Ele era muito bom. Mas a essa altura eu já tinha minhas suspeitas. Depois do exame, procurei esse rapaz brilhante e lhe contei que era dos Estados Unidos e queria lhe fazer algumas perguntas que não afetariam em absoluto o resultado de seu exame. A primeira pergunta que fiz foi: — Você poderia me dar exemplo de uma substância diamagnética? — Não. Então perguntei: — Se este livro fosse de vidro, e eu estivesse olhando alguma coisa que está em cima da mesa através dele, o que aconteceria com a imagem se eu girasse o vidro? — Seria defletida num ângulo equivalente ao dobro do ângulo em que o senhor girasse o livro. — Você não está confundindo o vidro com um espelho, está? — perguntei. — Não, senhor! Ele acabara de dizer, durante o exame, que a luz seria deslocada, ficando paralela a si mesma, e que portanto a imagem se deslocaria para um dos lados, mas não seria afetada por ângulo algum. Ele tinha até mesmo estimado o quanto ela se deslocaria, mas não entendia que o vidro é um material que tem um índice, e que o cálculo mencionado no exame se aplicava a minha pergunta. Dei um curso de métodos matemáticos aplicados à física na escola de engenharia, durante o qual tentei ensinar os alunos a resolver problemas por tentativa e erro. É uma coisa que eles normalmente não aprendem, então comecei com alguns exemplos simples de aritmética para introduzir o método. Fiquei surpreso porque apenas 10% dos alunos resolveu a primeira tarefa proposta. Então fiz uma grave preleção dizendo que eles precisavam tentar em vez de ficarem apenas sentados me vendo fazer. Depois da aula, alguns alunos vieram a mim numa pequena delegação e disseram que eu não entendia a formação deles, que eles eram capazes de estudar sem resolver problemas, que já tinham aprendido aritmética e que as coisas que eu estava dizendo estavam abaixo do nível deles. Então continuei com o curso, e, por mais complexa ou avançada que a matéria estivesse ficando, eles nunca me entregaram nenhum trabalho. Claro que percebi o que era aquilo: eles não conseguiam! Outra coisa que nunca consegui que eles fizessem foi formular perguntas. Finalmente, um deles me explicou por quê: “Se eu lhe fizer uma pergunta durante a aula, depois todo mundo vai me censurar: ‘Por que você nos fez perder tempo na aula? Estamos tentando aprender alguma coisa e você o interrompe com perguntas.’” Era uma espécie de demonstração de superioridade, em que nenhum deles sabia o que estava acontecendo, mas inferiorizava o outro como se soubesse. Todos fingem que sabem, porém, se um colega admite por um momento que alguma coisa está confusa e faz uma pergunta, os demais tomam uma atitude prepotente, agindo como se nada estivesse obscuro e dizendo ao autor da pergunta que ele estava atrasando os demais. Expliquei que era útil trabalhar em conjunto, esclarecer as dúvidas, discuti-las, mas eles não fariam isso porque se sentiriam humilhados se tivessem de perguntar a outra pessoa. Era uma pena! Pessoas inteligentes, que se davam aquele trabalho todo, assumiam essa estranha forma de pensar, um modo canhestro de “educação” automultiplicadora sem sentido, completamente sem sentido! Ao fim do ano letivo, os alunos pediram que eu desse uma palestra sobre minha experiência de ensino no Brasil. Estariam presentes não apenas estudantes, mas professores e autoridades, então fiz com que prometessem me deixar dizer o que quisesse. Eles disseram: “Claro. Naturalmente. Este é um país livre.” Então cheguei à palestra levando os livros didáticos de física usados no primeiro ano da faculdade. Eles gostavam muito desses livros por que tinham tipologia variada — as coisas mais importantes para lembrar vinham impressas em negrito, as coisas um pouco menos importantes vinham com menos destaque, e assim por diante. De saída, alguém me perguntou: — O senhor não vai dizer coisas ruins sobre o livro, vai? O autor está presente e todos acham que é um bom livro. — Vocês prometeram que eu poderia dizer o que quisesse. O auditório estava lotado. Comecei definindo ciência como o entendimento do comportamento da natureza. E perguntei: “Qual seria um bom motivo para ensinar ciência? É claro que nenhum país pode se considerar civilizado se não… blá-blá-blá.” Estavam todos lá assentindo, porque sei que é assim que eles pensam. Então eu disse: “Isso é claramente um absurdo! Por que deveríamos sentir que devemos estar à altura de outro país? Temos de fazer isso por um bom motivo, um motivo sensato; não só porque outros países fazem.” Falei da utilidade da ciência, de sua contribuição para a melhora da condição humana e tudo mais — provoquei-os um pouco. Em seguida afirmei: “O objetivo principal da minha palestra é demonstrar a vocês que não se está ensinando ciência no Brasil!” Eles se remexeram nas cadeiras, e pude ver que pensavam: “O quê? Não estamos ensinando ciência? Isso é loucura. Temos um monte de aulas!” Então eu disse a eles que uma das primeiras coisas que me chocaram quando cheguei ao Brasil foi ver meninos do curso primário nas livrarias comprando livros de física. Há tantas crianças aprendendo física no Brasil, começando muito antes que as crianças dos Estados Unidos, que é surpreendente não encontrarmos um grande número de físicos no Brasil — por que isso acontece? Há tantas crianças se esforçando, e não sai nada disso. Fiz então uma analogia com um estudioso de grego que ama a língua grega e sabe que em seu país não há muitas crianças estudando grego. Vai a outro país e fica feliz ao ver todo mundo estudando grego — até mesmo as criancinhas da escola primária. Ele vai assistir à prova de um aluno que está para se formar em grego e lhe pergunta: “Quais eram as ideias de Sócrates sobre a relação entre o Verdadeiro e o Belo?” Mas o estudante não sabe a resposta. Então ele pergunta: “O que Sócrates diz a Platão em O banquete?” O estudante se anima e pá- pá-pá — repete tim-tim por tim-tim, palavra por palavra, e em bom grego, o que Sócrates disse. Mas o que Sócrates discute em O banquete é a relação entre o Verdadeiro e o Belo! O que o estudioso de grego descobre é que os estudantes do outro país começam a aprender grego com a pronúncia das letras, depois das palavras, depois das sentenças e dos parágrafos. Sabem recitar palavra por palavra o que Sócrates disse sem entender que aquelas palavras gregas têm algum sentido. Para o aluno, são sons artificiais. Nunca ninguém traduziu aquilo em significado. “É assim que me parece que vocês estão ensinando ‘ciência’ às crianças aqui no Brasil”, falei. (Uma bomba, não acham?) Então peguei o livro didático de física elementar que eles usavam. “Em nenhum ponto do livro são mencionados resultados experimentais, exceto naquele em que há uma bola, rolando num plano inclinado, em que se diz a que distância a bola chegará depois de um segundo, dois segundos, três segundos e assim por diante. Os números encerram ‘erros’ em si, ou seja, olhando para eles, você dirá que está observando resultados experimentais, porque os números estão um pouco acima ou um pouco abaixo dos valores teóricos. O livro está sempre falando de corrigir os erros experimentais. Pois bem. O problema é que, quando se calcula o valor da aceleração constante a partir desses valores, obtém-se a resposta certa. Mas, para que uma bola role por um plano inclinado, ela precisa vencer uma inércia, e, se o experimento for feito, o resultado será de cinco sétimos da resposta correta por causa da energia extra necessária para que a bola entre em rotação. Portanto, esse simples exemplo de ‘resultado’ experimental foi obtido de um experimento falso. Ninguém pôs a bola para rolar, caso contrário, nunca teria obtido esse resultado!” Fiz uma pausa e continuei: “Descobri outra coisa. Folheando o livro ao acaso, e pondo o dedo e lendo as frases de cada página, posso lhes mostrar qual é o problema — que isso não é ciência, mas decoreba, e em todos os casos. Sou corajoso o bastante para folhear o livro aqui, diante dessa plateia, pôr o dedo numa coisa qualquer, lê-la e mostrar a vocês.” Foi o que fiz. Brrrrrrrup — pus o dedo num ponto qualquer e comecei a ler: “Triboluminescência. Triboluminescência é a luz emitida por certos cristais quando friccionados…” Então perguntei: “E aqui, temos ciência? Não! Apenas se disse o que uma palavra significa usando outras palavras. Não se disse nada sobre a natureza — que cristais emitem luz quando friccionados, por que emitem luz. Vocês viram algum aluno ir para casa e tentar fazer isso? Ele não conseguiria. Mas se em vez disso estivesse escrito: ‘No escuro, pegue um torrão de açúcar e esmague-o com um alicate. Um clarão azulado surgirá. Isso também acontece com alguns outros cristais. Não se sabe por quê. O fenômeno é chamado triboluminescência’, então alguém poderia ir para casa e tentar fazer o experimento. Isso é uma experiência com a natureza.” Usei esse exemplo, mas não teria feito a menor diferença se tivesse posto o dedo em qualquer outro lugar do livro; era a mesma coisa em toda parte. Por fim, eu disse que não conseguia ver como alguém era capaz de se formar nesse sistema de automultiplicação, em que as pessoas são aprovadas em exames e ensinam outras pessoas a passar nos exames, mas ninguém sabe nada. “No entanto”, falei, “devo estar errado. Havia dois alunos muito bons na minha turma, e um dos físicos que conheço se formou inteiramente no Brasil. Portanto, deve ser possível para algumas pessoas abrir caminho em meio a esse sistema, mesmo ele sendo tão ruim.” Depois da palestra, o chefe do departamento de formação científica levantou-se e disse: “O sr. Feynman nos disse coisas muito difíceis de ouvir, mas, ao que parece, ele ama a ciência e é sincero em sua crítica. Assim, acho que devemos ouvi-lo. Cheguei aqui sabendo que temos algum mal-estar em nosso sistema educacional, mas agora vejo que temos um câncer!” E sentou-se. Isso deu a outras pessoas liberdade para se expressar, e todos se entusiasmaram. Todos se levantavam e davam sugestões. Os estudantes formaram comissões para mimeografar as aulas previamente e outras comissões para fazer isto ou aquilo. Então aconteceu uma coisa totalmente inesperada. Um dos estudantes se levantou e disse: “Sou um dos alunos a quem o sr. Feynman se referiu. Eu não fui educado no Brasil. Estudei na Alemanha e só vim para o Brasil este ano.” O outro estudante que tinha se saído bem disse alguma coisa parecida. E o professor que mencionei levantou-se e disse: “Estudei aqui no Brasil durante a guerra, quando, por sorte, todos os professores tinham deixado a universidade, então aprendi tudo estudando sozinho. Assim, não fui na verdade educado dentro do sistema brasileiro”. Eu não esperava aquilo. Sabia que o sistema era ruim, mas cem por cento ruim… era terrível! Como eu tinha ido ao Brasil dentro de um programa patrocinado pelo governo dos Estados Unidos, o Departamento de Estado solicitou que escrevesse um relatório sobre minha experiência brasileira, e nele aproveitei essencialmente o que tinha dito na palestra que acabara de dar. Mais tarde, soube informalmente que alguém do Departamento de Estado comentou: “Isso mostra como é perigoso mandar uma pessoa tão ingênua ao Brasil. Pobre sujeito; ele só causa confusão. Não entendeu os problemas.” Mas é justamente o contrário! Acho que essa pessoa do Departamento de Estado foi ingênua ao pensar que, apenas porque viu uma universidade com uma lista de cursos e descrições, ela era realmente isso. |